Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Uma carta de amor ampla e irrestrita.

10,0
A câmera nervosa irrompe da tempestade para invadir um antigo teatro, rasgando portas, hall, palco, tudo. Assim, de forma bem explícita, Roman Polanski inicia sua narrativa, aguçando a retina para o que está por vir logo em seu frame inicial. Fique claro: Polanski está de volta, grita essa tomada; então, esqueça o cineasta que na última década só tinha (parafraseando Glauber) ou uma câmera na mão ou uma ideia na cabeça. O homem que está de volta com tudo concatenado, tendo uma visão muito clara do que contar. E, vejam só, ele nem quer contar pouca coisa não...

Imagine a própria mente de Polanski se abrindo para o novo em fins dos anos 80. Após o fracasso de Piratas chacoalhar sua carreira (a câmera nervosa rasgando a tempestade?), um thriller estrelado por Harrison Ford colocaria de volta um eixo no mestre. O que Busca Frenética tem de especial? Narrativamente, quase nada. Mas a escalação de sua jovem protagonista feminina aponta uma curiosidade: quem é Emanuelle Seigner? Mais de 25 anos depois, Polanski e Seigner ainda estão casados e tudo faz sentido. Qual a melhor forma de homenagear três décadas de casamento e parceria artística que não a forma mais inteira onde podemos vê-los? A ironia é que provavelmente Polanski partiu de algo muito privado e conseguiu escrever uma carta de amor que pode ser lida, assimilada e direcionada a todos que amam arte.

A adaptação da peça de David Ives (essa também uma releitura livre e cheia de adendos de um clássico de Leopold von Sacher-Masoch) é o que talvez seja o máximo em qualidade de transposição que Polanski já se permitiu; literatura que vira teatro que vira cinema acaba, quem diria, celebrando todos esses movimentos artísticos, e muito mais. Porque há muito tempo não vemos um Polanski tão multiplamente excitado e excitante, construindo delicada mise-en-scene para dar vida a uma dupla de personagens formidáveis. Num jogo cênico que surpreende pelo realismo ao mesmo tempo que explode tudo em hiper-realismo, com sons, cores, objetos e linguagem maximizando uma proposta tão micro quanto macro, o mestre atira em uns 18 lugares diferentes e acerta todos.

Basicamente tudo que vinha patinando nos seus últimos filmes se acerta aqui (principalmente no bastante equivocado Deus da Carnificina), e o que se vê é uma declaração de amor que se refresca ao tornar-se pública. Porque se o alvo principal é o encontro de almas que se forja entre um autor/diretor e uma atriz que, digamos, gera todo o tipo de desconfiança e pânico inicial, Polanski não se furta em somente desnudar a camada mais fina de sua intimidade com Emmanuelle (o que já seria e é fascinante) e escancara o desmedido amor que nutre pela arte na sua totalidade, celebrando-a de forma irrestrita.

Na tela, vemos a magnética Vanda tomar cada ponto da tela, do espaço cênico e, num processo mais complexo, da cabeça de Thomas, criatura feroz que chega vulgar e requinta seu processo de captura passo a passo, até não existir qualquer plano de fuga para o criador (nem para o espectador). Se o trabalho de Mathieu Amalric é mais uma vez o lugar comum do talento e do perfeccionismo, Emmanuelle corresponde completamente à declaração de seu marido e submerge na atuação de uma vida, daqueles momentos únicos do cinema onde vemos um novo capítulo do manual de interpretação ser escrito. Num grau de entrega e hipnose comparável ao momento de Naomi Watts em Cidade dos Sonhos, Emmanuelle transforma em realidade tudo o que Polanski, Ives e Sacher-Masoch humildemente tentam em imagens e palavras contar; ao espectador cabe a mesma posição do personagem de Amalric, tentar fugir da teia irresistível de uma interpretação fabulosa para capturar todas as imensas nuances de uma das grandes obras do ano, que paradoxalmente também o é pela exuberância dessa mesma interpretação.

Num raríssimo casamento de inúmeras e infindáveis qualidades em separado que congregam em espetacular obra-prima, Polanski rege essa orquestra de delicada afinação como há muito não fazia e consegue como poucos mestres atuais se reinventar e conjugar vários amores em um só. E quando Vanda vira o jogo ao final e Polanski declara mais um amor recôndito (ao feminino e a tudo que o constrói), nós temos certeza que uma vez é pouco para assimilar tamanha riqueza em meros 80 minutos.

Comentários (4)

Alexandre Koball | terça-feira, 22 de Setembro de 2015 - 22:07

Outro lançamento brasileiro tardio. Mas filmão, com certeza.

Laís P. | domingo, 27 de Setembro de 2015 - 00:19

Eu adorei esse filme. Inteligente, preciso e surpreendente. Mas "Deus da Carnificina" equivocado? Porque? Gostei daquele tanto quanto gostei desse e apreciei muito as provocações de ambos.😉

Josiel Oliveira | segunda-feira, 24 de Dezembro de 2018 - 11:53

Muito boa essa crítica, gostaria de saber o que se especula sobre a relação pessoal do Polanski com esse filme.

Faça login para comentar.