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Críticas

Cineplayers

Inteligência e solidariedade.

10,0

Na Capadócia do inverno, as estradas se enchem de lama, o que estraga as botas já gastas dos trabalhadores. Crianças usam luvas nas salas de aula, o chão liso é escorregadio e o gelo negro mata. A neve desce como um fino véu branco sobre a paisagem montanhosa, ganhando o afeto de turistas com um gosto pelo exótico. No jornal local, Aydin (Haluk Bilginer), um ator aposentado, escreve sobre o descaso estético da população da cidade, que não se atenta para preservar suas belezas naturais.

Nuri Bilge Ceylan filma, mais uma vez, o esplendor muito cinematográfico da paisagem turca. Há um interesse por revelar a distância entre classes ali contida. Winter Sleep tem mais sequências internas nas suas três horas de filme do que seu antecessor, Era uma Vez na Anatólia. No novo filme, familiarizamo-nos com as dependências do Hotel Othello, carregadas de um aconchego intelectual, com estantes de livros e decoração referente a símbolos da cultura popular turca. Os visitantes ali buscam a verdadeira Turquia, o natural e eterno. Aydin faz questão de acentuar: “Só quero hóspedes que apreciem o natural”.

Pelo bem do que é natural, Aydin recusa-se a evitar a lama ao redor do Hotel, afastando o Othello dos homens e mulheres a quem aluga as propriedades herdadas de sua família. Ele não conhece essas pessoas, mas as despreza e nega qualquer relação de classe no seu desprezo. A Hamdi (Serhat Mustafa Kiliç), um desses homens, ele se refere como um Imam (um líder religioso do islamismo) e dá sentido crítico e jocoso à palavra. Aydin tem muita apreciação pela maneira como ele mesmo utiliza as palavras.

Em aparente oposição a Aydin, está sua esposa, Nihal (Melissa Sözen). Ela reconhece a diferença de classes e procura não se limitar à comoção, criando comitês solidários para resolver problemas frequentes na infraestrutura das escolas locais. Ela não vive a mesma alienação de seu marido, mas uma de outro tipo, que está completamente fora do controle de seu ego. Nihal é alienada na mesma medida do inevitável para toda a classe média, ou para todo não-oprimido. Os seus sentimentos são verdadeiros, a sua luta é útil até certo ponto. Mas só até certo ponto, muitas vezes o seu sentimento e a sua luta são tão inúteis quanto o intelecto do marido.

No lugar de trazer algum confronto ideológico entre solidariedade e intelecto, Winter Sleep coloca-os como os dois lados da mesma moeda em uma sociedade desigual. Duas pretensões culpadas da classe dominante manifestada através da palavra ou do ato. Só que a palavra e o ato têm seus limites de eficácia; e a fronteira está mais próxima do que talvez nós imaginássemos.

A própria realização de Winter Sleep poderia contradizer o questionamento do filme. Como usar a inteligência e o sentimento de classe para falar justamente da sua limitação? Acho que Ceylan é particularmente genial ao aceitar esse risco, e ele o aceita até a última medida. Seria mais fácil reconhecer essa limitação zombando seus personagens, deslegitimando o que dizem e sentem. E Ceylan faz o oposto. Seus personagens não são meras caricaturas, são sujeitos reais que, como todos, tendem a agir como uma.

Apesar das digressões de caráter que se revelam no confronto entre Nihal e Aydin, há também ali um encontro ideológico de classe. O rancor entre eles surge da repulsa que um tem em se reconhecer no outro. É a semelhança entre eles que os dois, principalmente Nihal, não suportam. Aydin busca fugir de Nihal; e Nihal, de ser Aydin. Ao tomarem, finalmente, a iniciativa da estrada para longe um do outro, será em vão: andarão em círculos pela neve. A solidária Nihal será amaldiçoada com a culpa eterna. E Aydin encontra, novamente, um cretino conforto no intelecto.

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