O exagero visual do vaudeville, a ambição de retratar a vida cotidiana vinda do folhetim, o efeito provocado por música e cores: é difícil pensar em um gênero da grande indústria mais expressivamente cinematográfico que o melodrama. Estandarte de uma indústria desde seu nascimento, a sua função pedagógica entre o público sempre foi algo admirado entre as classes populares. O mesmo apelo popular atraente de histórias de rádio, romances pulp e telenovelas está em Imitação da Vida, considerada a magnum opus do alemão Douglas Sirk. “O Príncipe do Melodrama”.
Enquanto recorte da vida cotidiana que tratasse de questões sensíveis à sociedade capitalista e judaico-cristã, Imitação da Vida aposta em temáticas em seu longo percurso que expõem conflitos entre conservadorismo e progressão; seus personagens são avatares de figuras oprimidas com eventos centrais detonados do cotidiano, dando a ideia de “crônica épica” do urbanismo. O evento detonador é quando a viúva Lora perde sua filha na praia e, com a ajuda de um estranho que conhece no momento, Steven Archer, encontra sua filha momentos depois com Annie Johnson, uma mãe solteira e negra, que trabalha como doméstica.
Todo o filme está nos nossos olhos em poucos minutos e todas as questões que vemos adiante envolvendo machismo e racismo já podem ser antecipadas a partir dali. Lora, que sonha em ser atriz, terá que escolher entre carreira e relacionamento, já que seu interesse romântico Steven desaprova a profissão, um conflito que toma grande parte da primeira hora do filme.
Aqui, Sirk filma uma mulher que não deseja cumprir papéis a ela determinados, que é ambiciosa e encontra tremenda dificuldade para equilibrar os pilares da sua vida, o que causa um distanciamento entre mãe e filha e uma identificação de figura materna em Annie, que enfrenta problemas com sua filha Sarah Jane, resistente a aceitar sua identidade afro-americana em uma sociedade que adota práticas notoriamente racistas.
Descrito pela professora de cinema de Berkeley Linda Williams como um dos gêneros “físicos” do cinema, ao lado do horror e do filme pornográfico (no sentido de querer provocar reações físicas em quem assiste – medo, choro, excitação), a simplicidade é a grande estratégia de Sirk: os conflitos têm sua complexidade reduzida ao mínimo, em uma história de protagonismo e antagonismo sobre um grupo de mulheres que, tendo sido criadas em meio ao patriarcado WASP, encontram grande resistência de todos os lados, com a transgressão sendo difícil e triste às raias do trágico, com seus personagens sendo devorados por sombras, tendo que encarar seus próprios reflexos em espelhos, tendo seus choros e gritos pontuados por música dramática.
Os personagens do melodrama de Sirk são simples e fiéis à sua natureza: aqueles que tem um objetivo determinado desde o início jamais o desviarão, mesmo que tenham pagar caro por desobedecer os padrões impostos; seus personagens confusos sobre suas origens terão que enfrentar uma verdadeira via crucis antes de fazer as pazes consigo mesmo e com os entes queridos que machucaram em sua jornada de autodescoberta.
Sirk dominava as ferramentas do melodrama como poucos e há de se perceber aí a questão do observador de fundo, o ponto de vista identificado com o espectador, aquele que comenta a cena que outros dois protagonizam. Enquanto os conflitos se desenrolam, Annie contempla a jornada de Lora de se fazer sozinha, se firmando na indústria, resolvendo sua vida afetiva, vendo ela distanciar-se da filha; e Lora observa e comenta a tragédia de Annie e Sarah Jane, também distanciadas, mas por diferentes razões. Estão sempre lá, em pontos de fuga da tela, observando a degradação psicológica cuja miséria é transformada em ação física. Quando filma reflexos, entendemos que para Sirk o maior fantasma não era personificado em uma única figura, porque na verdade estamos testemunhando um personagem em diálogo arrasador consigo mesmo, regido pelo jogo de misé-en-scen de angulação, enquadramento, iluminação, cores, postura, música. Condenado por naturalistas por seu excesso de exagero, o melodrama – o drama cantado – aposta tudo na encenação, no efeito plástico, nessa potencialidade que o cinema tem a oferecer. A expiação do sofrimento será vista, será ouvida, e será catártica.
É interessante pensar que uma determinada geração de cineastas pegou a narrativa clássica – Sirk e outros ainda nas décadas de trinta e quarenta, Samuel Fuller, Nicholas Ray e Sidney Lumet já na década de cinquenta – e levou a mesma até o limiar da modernidade, dissolvendo os inúmeros recortes em composições, os sentimentos que antes de verbalizados são plasticizados, entendível antes de tudo aos nossos olhos. A narrativa era cada vez menos didática e cada vez mais preocupada com o afeto.
Afeto esse sobre o qual o conterrâneo, companheiro de profissão e admirador fanático Rainer Werner Fassbinder escreveu: “As pessoas não podem viver sozinhas, mas também não conseguem viver juntas. Eis porque os filmes de Sirk são tão desesperados... Douglas Sirk olha para esses cadáveres com tal ternura e cordialidade que começamos a pensar que algo possa estar profundamente errado e se essas pessoas são tão imbecis e, apesar disso, tão humanas. A culpa é do medo e solidão”.
A grande referência da figura mais intensa e profícua do Cinema Novo Alemão faz em Imitação da Vida uma reunião de seus temas preferidos, uma hipérbole de sua já conhecida estilização, uma dimensão grandiosa da atmosfera urbana, encontrando seu ápice em sua última sequência, praticamente um espelho distorcido da primeira sequência, um pesadelo da sequência de abertura onde, como em um fruto da mentalidade judaico-cristã protestante, a possibilidade de redenção e salvação pode vir apenas por confissão, arrependimento e penitência.
Natural para um estilo afeito a ápices transformadores, a explosões de emoções revolucionárias, crente que iluminar é expôr; Imitação da Vida faz jus ao seu título, falando de ilusões, decepções, erros e consciência, sobre fantasmas diegéticos que aprisionam com sua presença invisível. Nos filmes de Sirk, viver – transgredir, amar, existir – não é fácil e custa muito caro. Mas não viver é infinitamente pior. Assim como Douglas Sirk, que passou décadas filmado corpos retorcidos e almas doloridas, porque não o fazer implicaria em jamais atentar às garras da dominação e sucumbir a trevas de ignorância. Porque posto em filme, o “drama melódico”, como potência arrasadora de emoções que é, ou nos tira do lugar ao qual nos acostumamos ou cessa de existir.
Ótimo filme, só não sei se chega a ser uma obra-prima. Clássico é, mas OP, não sei....🙄
Preciso ver esse urgente!
Não há como negar o talento de Sirk. No entanto, se ele foi o Príncipe do Melodrama, John M. Stahl foi o Rei. Ainda prefiro a versão de 1934, que se não tem o rebuscamento técnico desta, não deixa de possuir uma força primeva que longe esta de se esvair. Opinião minha, que não invalida o teu escrito em nada. Parabéns.
Um dos melhores filmes que eu vi na vida.