Cult obscuro dos anos 60, é uma pérola do cinema psicodélico e das vanguardas artísticas da época.
Barbet Schroeder, nascido no Irã, naturalizado francês, começou no cinema participando ativamente em alguns filmes da nouvelle vague, como produtor e ator. Sua estreia na atuação foi no curta La boulangère de Monceau (idem, 1963), de Eric Rohmer, e mais tarde já estava em filmes de Jean-Luc Godard do início da década de 60, como Tempo de Guerra (Les Carabiniers, 1963) e no coletivo Paris Visto Por... (Paris vu par..., 1965). Portanto, foi grande o envolvimento e a influência que o então jovem Schroeder recebeu de nomes tais como Claude Chabrol, Jean Douchet, Eric Rohmer e Jacques Rivette.
Alguns anos mais tarde, sua carreira se solidificaria mesmo na cadeira de direção. Mas, apesar de toda a influência de seus contemporâneos, seria errado classificar Barbet Schroeder como um autor da nouvelle vague – ainda que seus filmes apresentem diversas características temáticas e estilísticas em comum, por assim dizer. O ano de 1969 marca a sua estreia como diretor, com o clássico cult More (idem, 1969), um curiosíssimo filme em língua inglesa rodado em diversos países, que versa sobre juventude, liberdade, drogas e psicodelia – um retrato cultural bastante denso e simbólico do final daquela década.
Recém formado em matemática, o jovem alemão Stefan Brückner (Klaus Grünberg) está com o pé na estrada, à beira do acostamento, pedindo carona rumo ao novo, ao incerto, ao inesperado. O tempo está nebuloso, a chuva é intensa, a música é experimental: qual o futuro das artes, do cinema, da música? Uma busca desesperada por redenção, para um sentido para a vida, ou pela própria vida – ecos do argumento do então sucesso recente A Primeira Noite de Um Homem (The Graduate, 1967) já nas primeiras cenas. Chegará a Paris, sem lenço e sem documento, onde em uma festa conhece e se apaixona por Estelle Miller (Mimsy Farmer), não por acaso justamente uma norte-americana, loira de emblemáticos cabelos curtos, libertária, usuária de heroína. Uma resposta a busca de Stefan.
O que se vê dali em diante é a aventura de um casal que vive os anos 60 como supostamente teriam sido vividos: fuga pelas estradas, viagens lisérgicas, sobretudo o paradoxo que custou a revolução cultural da época: a liberdade e a autodestruição. Enquanto o casal tem seu itinerário insólito, a paisagem de Ibiza, um dos belos destinos, contribui para o clima místico e misterioso que paira sobre a obra. É possível identificar uma forte influência de Godard, principalmente de O Demônio das Onze Horas (Pierrot le fou, 1965) e Acossado (À bout de souffle, 1960), entretanto More jamais teve a relevância desses filmes – é underground por natureza. Talvez seja muito mais conhecido por sua trilha sonora do que por seus méritos cinematográficos.
Barbet Schroeder convidou a então novata banda The Pink Floyd, que era a mais pura vanguarda musical da época, para realizar a trilha do filme. As performances genuinamente malucas de início de carreira, que misturavam rock, pop, música erudita contemporânea, sons, ruídos eletroacústicos e música clássica, fantasia e delírio, foram habilmente mescladas com as sequências do filme, que resultam em momentos de pura poética audiovisual. Como se as imagens e toda a narrativa estivessem possuídas, dominadas por uma possessão de natureza esotérica, destinadas a um rumo soturno e sem volta.
Numa das cenas mais interessantes, Stefan, alucinado, corre em direção a um moinho, e luta contra ele. Uma menção direta ao livro Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, e ligeiramente óbvia, se não fosse o teor lisérgico da tomada. Esta imagem acabou por se tornar a capa do disco do Pink Floyd, chamado Original Motion Picture Soundtrack from the film More. O resultado ficou tão interessante que logo em seguida Michelangelo Antonioni escalou o grupo para participar da trilha de Zabriskie Point (idem, 1970). A banda quase acabou se destinando a ser uma especialista em trilha sonora de filmes, visto que até Stanley Kubrick relutou para que participassem de Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971), o que de última hora foi evitado por Roger Waters – a suíte Atom Heart Mother, que abre o disco homônimo, e se estende por todo o lado A, deveria estar no filme – uma polêmica não totalmente esclarecida até hoje. Mais tarde a banda participaria da trilha de diversos outros filmes, e viriam ainda o musical The Wall (idem, 1982), de Alan Parker, e até mesmo a questionável coincidência da combinação entre o disco The Dark Side Of The Moon e O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, 1939).
Mas assim como o auge da era psicodélica, os anos 60 também tiveram o fim como seu derradeiro destino. More representa este momento. Schroeder, que também escreveu o roteiro, diz ter se inspirado no mito grego de Ícaro, o homem que quis ousar além de seus limites e deixar Creta voando, com suas asas artificiais rumo ao sol. Interessante, inclusive, o papel simbólico atribuído ao sol no filme, e como ele é magistralmente fotografado por Néstor Almendros, que viria a se tornar um dos maiores diretores de fotografia de toda a história do cinema – somente Cinzas do Paraíso (Days of Heaven, 1978), de Terrence Malick, é prova suficiente para isso.
More reflete muito o seu tempo, sua época. Há uma aura dos filmes de Andy Warhol, até mesmo dos curtas Kenneth Anger, seja pelas cenas de nudez, ou pelo uso da música pop contemporânea na mise em scène. Se não desfruta do mesmo prestígio dos clássicos revolucionários da nouvelle vague, tampouco é lembrado entre as obras chave dos finais dos anos 60, como Sem Destino (Easy Rider, 1969) e Perdidos na Noite (Midnight Cowboy, 1969), este filme um tanto negligenciado pela história certamente merece uma revisão. Seu legado é absolutamente evidente, até mesmo escancarado, em longas como Os Sonhadores (The Dreamers, 2003), de Bernardo Bertolucci. Obras, que como todas as outras mencionadas acima, tratam de utopias. Sobretudo a dicotomia entre sonhos e realidade, entre desejos e desilusões.
Filme com trilha sonora de Pink Floyd? Com certeza vou conferir! No que toca a relação entre a banda inglesa e os filmes de Kubrick, rola um boato de que eles rejeitaram a tarefa de fazer a trilha sonora para "2001: uma odisseia no espaço". Inclusive o ato final do filme possui uma sincronia perfeita com a música "Echoes" do álbum homônimo da banda. É uma pena, pois seria o final perfeito. No "You Tube" tem uma demonstração desta sincronia para nos deixar com mais água na boca...
Conhecia só de nome por causa da trilha do Pink Floyd, tenho curiosidade de ver. [2]
O Pink Floyd refez a parceria com Barbet Schroeder em 1972 no filme La Vallée, cuja trilha está no álbum Obscured By Clouds do mesmo ano. Maravilhoso, um dos meus preferidos da banda. Que tal uma resenha desse filme também?
Que texto, meuza migos.
Por favor, algum Bernardo escute o comentário abaixo!