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Críticas

Cineplayers

De Aldrich a Haneke, sobre a maldade do homem.

5,0

Pode parecer improvável, mas ver este A Fita Branca, filme de Michael Haneke que deve ser consagrado como melhor longa-metragem em língua não-inglesa nesta edição do Oscar, me entusiasmou a rever a obra-prima Crime e Paixão, de Robert Aldrich, e o paralelo/paradoxo existente entre ambos é determinante para explicar os motivos que me levam a gostar tanto mais da visão do falecido mestre sobre seus temas centrais do que a de Haneke, cineasta com quem divide estes interesses.  Tanto o Aldrich de 1975 quanto o Haneke de hoje em dia são autores particularmente estupefatos com a violência e a barbárie do homem, e é através do cinema que ambos expurgam de sua consciência os demônios que fazem com que sua visão de mundo e a crença nas convenções sociais que o constroem se esvaiam cada vez mais.

Pois a principal diferença entre ambos encontra-se justamente na forma com que se posicionam, através de seus filmes, em relação a este mundo, à violência e à tragédia da corrupção humana que tanto repudiam. Aldrich, que em seus trabalhos para estúdios hollywoodianos encontrava constantemente brechas para pontuar observações sobre a realidade social, torrou todo dinheiro que conquistou com o sucesso de Os Doze Condenados fundando uma produtora própria para que pudesse expor abertamente em seus filmes tudo aquilo que pensava sobre o mundo moderno. Foi nesta safra de extrema liberdade criativa e pessimismo latente e contagiante que filmou, entre outros, Crime e Paixão, que divide com A Fita Branca um terreno semelhante, embora mais abrangente por, afinal, se tratar de uma metrópole: uma sociedade contaminada pela maldade.

Porém, a forma com que ambos lidam com o social, com a massa humana e os problemas que a rondam, é determinantemente diferente, praticamente contraditória. O personagem de Burt Reynolds em Crime e Paixão, como integrante deste mundo problemático submerso em um tsunami de corrupção moral, enfrenta diariamente os homens em suas mais distintas peculiaridades, precisando lidar com sentimentos à flor da pele – incluindo os seus próprios, que, assim como para qualquer outro, determinam muitas das escolhas que faz tanto em âmbito profissional quanto pessoal. O homem no cinema de Aldrich é cruel, mas a violência e, especialmente, o ódio, um dos mais fortes sentimentos, estão ligados a este que é um princípio básico do homem: a capacidade de sentir, o que faz do homem um ser suscetível a diversos fatores externos à base de sua natureza.

É então que chegamos à população da vila germânica deste A Fita Branca: um grupo de pessoas que, por detrás das funções que ocupam na representatividade da engrenagem social, estão calcadas em uma mesma camada de valores, de princípios e, que, incrivelmente, parecem presas a um conceito único de pessoalidade que faz com que, à exceção das formas físicas, parecem se tratar de pequenas variações de traços personalísticos muito próximos da desumanidade – personagens de uma história que existem apenas para justificá-la. A bem da verdade, a narrativa deste A Fita Branca, cuidadosamente e quase matematicamente planejada sob uma moldura fordiana de filme sobre pequenas comunidades, parte de e se estrutura sob uma forma de simplificação de conceitos tão pesada que coloca o filme em choque com a própria visão de social que aprendemos desde os tempos de escola - dentro e fora dela, através da vivência do dia-a-dia.

As intenções do diretor são bastante claras e amplamente divulgadas (o filme apresenta a geração de alemães que mais tarde apoiaria o nazismo), mas a maneira com a qual sustenta este discurso é bastante simplista. Para Haneke, as raízes do mal estão no próprio homem, em todos eles, sem escapatória: provém de sua fraqueza e da facilidade com a qual são corrompidos. A sociedade doutrina as pessoas ao ódio, as ideologias cegam e o mais simplório discurso, sem muito esforço ou qualquer necessidade de coerência, convence o homem comum a fazer as maiores loucuras, como assaltar um supermercado, atirar-se com um avião contra um edifício ou entrar para uma guerra. Neste mundo de Haneke não há particularidades, apenas a catequese, e ela está a serviço do mal. O fascismo prenunciado pelo filme, assim como qualquer outra doutrina responsável por períodos de instabilidade social do século passado, termina sendo exclusivamente uma conseqüência desta realidade intrínseca ao ser humano, independendo de fatores externos, das ações e reações das coisas do mundo. Seria, para Haneke, apenas mais um filho do mal.

Uma forma no mínimo reducionista de lidar com a vida, afinal, tanto o filme quanto quem o assiste e apoia, seja produzindo, distribuindo ou apenas elogiando, fazem parte deste mundo desprezível e indefectivelmente unidimensional pintado em tela. Assim como o Von Trier de Dogville, Haneke não concede espaço, nem mesmo na covarde narração em off  (do único personagem que não está “contaminado”, mas que é tratado com nulidade), para soluções ou uma possível válvula de escape: o espectador está preso a uma armadilha moral cercada por fogo e é induzido (cinematograficamente inclusive – caro diretor, aqueles contrastes extremos não enganam) a condescender, e qualquer oposição está determinantemente excluída do universo diegético do filme. Talvez a pretensão de Haneke fosse justamente aproveitar-se de seu público, nós, homens preenchidos por uma fraca massa facilmente modelável, e fazer o primeiro filme unânime do universo, mas felizmente seu próprio discurso está errado e as pessoas, diante disso, têm o direito de analisarem, discutirem e gostarem ou não de seu trabalho.

De minha parte, resta apenas recordar de Aldrich e sua capacidade de apresentar a barbárie de nossa raça humana mostrando o mínimo de indignação e, especialmente, sem omitir-se como se não fizesse parte dela.

Comentários (2)

Felipe Alekhine | segunda-feira, 12 de Dezembro de 2011 - 03:09

Estou "processando" o filme ainda...

Mas

"Para Haneke, as raízes do mal estão no próprio homem, em todos eles, sem escapatória: provém de sua fraqueza e da facilidade com a qual são corrompidos"

Não acho isso simplista ou reducionista,muito pelo contrário.Pensar sobre a hipótese de que o "mal" está dentro de nós é bem mais complexa do que o discurso mais recorrente de que tudo sempre é resultado de algum tipo Força social ou política. Força essa que quase sempre está no Outro ou não tem rosto.

Cogitar que somos "maus"(não estou dizendo que somos) exige na verdade bastante coragem,mas a questão é:
Haneke se inclui no "somos"?

Reginaldo de Souza | segunda-feira, 28 de Maio de 2012 - 16:41

"...bem mais complexa do que o discurso mais recorrente de que tudo sempre é resultado de algum tipo Força social ou política."

Onde, senhor, que esse discurso é o mais recorrente?

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