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Críticas

Cineplayers

Mais que um filme que versa sobre o macarthismo e até mesmo sobre o feminismo, Johnny Guitar é um retrato dos marginalizados da América.

8,0

Não apenas na história do cinema, mas nas artes em geral, volta e meia são redescobertas obras que passam a desfrutar de nova apreciação, de uma nova valoração artística, contrastando com a dura realidade enfrentada no tempo de seu lançamento. Seja na pintura, com Van Gogh, que não teve reconhecimento sequer em vida, seja na literatura, com Franz Kafka (que inicialmente só recebeu irônicas gargalhadas) ou mesmo no cinema, com Cidadão Kane (Jean-Paul Sartre foi um dos detonaram o filme sem dó) e com o nosso clássico nacional Limite (na verdade, subestimado até hoje), muito do que é atualmente contemplado como obra-prima foi absolutamente execrado quando veio ao mundo. Seja pelo fato de que estava à frente de seu tempo, seja por trazer elementos demasiados atípicos para poder ser assimilado adequadamente pelo status quo.

Johnny Guitar é um grande exemplo desse fenômeno no cinema. Provavelmente o filme mais controverso de Nicholas Ray, um diretor que foi o descompasso em pessoa, Johnny Guitar foi totalmente rechaçado na época em todos os sentidos: fracasso absoluto de público e de crítica, além de ter rendido até severos comentários do próprio elenco. Uma excentricidade cinematográfica! Motivos para tanto existiam muitos: em Johnny Guitar, Ray foi se aventurar pelo território mais sagrado do cinema americano, o gênero cinematográfico por excelência: o western. Neste palco de criação do maior arquétipo de herói americano, onde o público projetava ideais de heroísmo e virilidade, esta forma de arte genuinamente norte-americana residia em lugar ecumênico no imaginário cinéfilo. Com Johnny Guitar, Ray ousou subverter e até mesmo parodiar justamente o mais simbólico e emblemático dos palcos para a criação de lendas no cinema. Grosso modo, por um simples motivo: trazia, num western, homens submissos às mulheres, estas as verdadeiras protagonistas e valentonas pra valer.

Na trama, tudo começa quando Vienna (Joan Crawford), uma mulher firme, durona, dona de um saloon e manda-chuva da região tem seu estabelecimento invadido pelo grupo da sua rival no vilarejo, a puritana Emma (Mercedes McCambridge), que faz diversas acusações, em especial ao sujeito conhecido “Dancing Kid” (Scott Brady), freqüentador do saloon por quem Emma é apaixonada, mas que ama Vienna. Esta, por sua vez, que passou anos ganhando a vida de forma “suspeita” (entenda-se: prostituição) até ter verba para ter seu próprio saloon, agora que está rica chamou Johnny Guitar, antiga paixão, para trabalhar para ela – como violeiro e pistoleiro de segurança! É com a chegada deste personagem, que dá nome ao filme, que toda essa trama de faroeste amoroso irá se desenrolar, porque é Johnny o grande amor da vida de Vienna, homem que ela nunca esqueceu – e o único capaz de quebrar o gelo da protagonista, interpretada com bastante verossimilhança pela igualmente imponente atriz Joan Crawford – anos depois, nos fins da década de 60, um novato desconhecido chamado Steven Spielberg se veria em apuros ao dirigi-la para a TV, diante de tanta firmeza e auto-confiança.

Entretanto, não apenas Joan Crawford chama a atenção por sua atuação, mas todo o elenco, em especial Sterling Hayden (o próprio Johnny Guitar) e McCambridge como a vilã Emma. Tudo graças ao conceito presente no roteiro e a opção do diretor: todos os diálogos são pontuados por frases de efeitos, com suas respostas cheias de ironia e inspiração, com direito a réplicas e tréplicas repletas de marra – o que pode afugentar muitos espectadores. Como consequência, muitas das falas soam de certa forma muito teatrais, encenadas, mas que de algum modo enfatizam o caráter rústico dos personagens – todos amargos sobreviventes das agruras da vida, errantes de sua própria sina.

Sempre foi da habilidade de Ray dar vida no cinema a personagens perturbados, descompassados com o mundo, como faria posteriormente de forma radical com James Dean em Juventude Transviada. Em Johnny Guitar, apesar distinção entre grupos que rivalizam, todos tem algo em comum: são párias, visivelmente perturbados pelo seus passados e por seus incontroláveis sentimentos. Ray bravamente deu voz e vida a uma classe de marginalizados nos EUA, não somente no sentido econômico, mas acima de tudo pela sensação de deslocamento social que acomete seus solitários personagens. Entretanto, o filme não cai em psicologismos, sem recorrer a cacoetes de explicação, contando suas vidas por meio de flashbacks ou diálogos, ou ainda justificando o porquê de os personagens serem ou agirem assim, por enfrentarem a realidade de forma tão dura, atormentada e destemida: simplesmente são o que são, sem passado e sem perspectiva de futuro.

O modo como o conceito de amor é tratado, e como são as suas manifestações (por exemplo, a relação amor x ódio, rejeição x desejo), também são bastante atípicas no cinema – algo que caberia até num livro do calibre de “Fragmentos do Discurso Amoroso”, do linguista francês Roland Barthes. Neste contexto de personalidades viscerais, de um “western às avessas” radicalmente contra o protocolo do gênero, Ray sutilmente faz uma crítica velada ao macarthismo, que simplificadamente é a caça às bruxas da América por todos que ameaçassem o establishment. As pistas são evidentes: o grande conflito reside entre a conservadora e falsa-moralista Emma, que, motivada por suas frustrações e recalques pessoais, alia-se aos chefes e poderosos para limpar a cidade de tudo o que possa remeter a subversão: Vienna, Johnny Guitar, Dancing Kid e cia. Curioso pensar que o próprio filme, na vida real, foi rejeitado justamente por fugir das convenções.

Se pensado como uma obra à frente do tempo, Johnny Guitar antevia a força que o movimento feminista teria na década seguinte, com a emancipação sexual e tudo mais. No início da projeção, ainda na apresentação dos personagens ao espectador, ouve-se um personagem divagando sobre Vienna: “ela fala como um homem, age como um homem [..] perto dela eu não me sinto homem.” Ou ainda, em uma discussão com Johnny, Vienna declara: “se um homem sai com várias mulheres ninguém diz nada. Se é uma mulher, é uma vagabunda; Por quê?”

A preocupação com o discurso simbólico do filme por parte de Ray se estende de forma chamativa até a escolha do figurino. Em seus filmes, costumeiramente o vermelho é sempre presente e fator decisivo para se decifrar a mensagem da obra como um todo. Uma das coisas que podemos perceber aqui é que, quando sensibilizada por Johnny Guitar, o único homem capaz disso, Vienna veste vermelho. Quando distante dele, retorna ao negro. Quando vitimizada, branco. A vilã moralista, a encarnação do conservadorismo e puritanismo americanos: túnica preta e gola branca, evidentemente. Isso e muito mais, é claro. O uso das cores em Johnny Guitar é um marco não somente na filmografia de Ray (até pelo fato de ser seu primeiro filme em cores), mas notável feito na história do cinema. Martin Scorsese dedica parte de seu livro e documentário “Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano” ao estudo do uso das cores neste filme. Para Scorsese, Ray concebeu em Johnny Guitar uma legítima “obra barroca” dentro do cinema clássico americano.

Johnny Guitar não é uma grandiosa obra-prima do cinema, um marco que mudou a sétima arte, mas tornou-se, inegavelmente, uma pérola, um emblemático cult movie. Graças, principalmente, ao sucesso que fez na Europa, sendo idolatrado pelos jovens da Nouvelle Vague nos anos 60 francesa, sobretudo por François Truffault, que o apontava como um dos filmes de sua vida. Wim Wenders e, como já mencionado, Martin Scorsese, prestaram tributo a este longa-metragem em diversas ocasiões. Se o até o l’enfant terrible do cinema Jean-Luc Godard foi às lagrimas no cinema quando viu Rastros de Ódio em 1956, o western onde o mito do cowboy e o heroísmo americano ganharam novas tonalidades, mais humanas e menos utópicas, dois anos antes Johnny Guitar era a própria materialização de uma revolução que estava por vir; era a celebração de uma nova perspectiva para o cinema. E, assim como em outros filmes de Ray, foi o prenúncio de um novo tempo.

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