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Críticas

Cineplayers

Odiado e genial ao mesmo tempo: Fausto de Murnau é uma boa adaptação para o cinema da obra de Goethe.

7,0

“Erra o homem, enquanto aspira”
Johan Wolfgang von Goethe

Poucos informes existem sobre a lendária figura de Fausto. Sabe-se que existiu um indivíduo de nome Johannes Georg Faust entre os anos 1480 e 1540, aproximadamente, natural de Knittlingen, hoje cidade alemã. Essas raras notícias só aumentam o poder especulativo sobre sua existência, e mais especificamente, sobre seu caráter. De acordo com Erwin Theodor, no prefácio de Fausto, “onde quer que se apresentasse, tornava-se logo o centro das atenções e assim, rejeitado, por exemplo, por teólogos, passava a ser aceito por naturalistas, objeto de curiosidade e temor. Ele próprio atribuía-se o título de “filósofo-mor entre os filósofos” e dava-se ares de um semi-deus. Jactava-se de poder reanimar os mortos, dizia-se médico, praticava a astrologia, era vidente, profeta e quiromante.”

Relatos orais floresceram cada vez mais ao redor de Fausto e, já no século XVI, é apresentada uma dissertação universitária a respeito desse objeto, que posteriormente influenciou um livro de histórias resumidas sobre as peripécias desse personagem, publicado anonimamente. Há também de se registrar A História Dramática do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe, obra dramática publicada provavelmente em 1592.

São trabalhos que pertinentemente influenciaram o escritor alemão Goethe (1749-1832) a talhar sua criação máxima, o supracitado Fausto, para muitos a obra fundamental da história germânica e sempre relacionado entre os livros mais importantes de toda a literatura mundial, que não por acaso levou cinqüenta e nove anos para ser concluído, em suas duas partes. É através da literatura de Goethe que o mito de Fausto se concretiza no imaginário, não só do povo alemão, mas também de toda a cultura universal, tornando-se referência para todas as belas artes e também para o cinema, que ainda nem sonhava em existir.

O enredo de Fausto concentra-se no personagem-título que, no afã de estar além dos conhecimentos da época, assina, com o próprio sangue, um contrato com Mefistófeles (o demônio), através do qual viveria servido pelo diabo por vinte e quatro anos sem envelhecer, em troca de sua alma. Durante esse período, se entrega aos prazeres mundanos para ao fim do prazo ser levado ao inferno. Porém, tendo encontrado o amor em Margarida, é salvo do destino ao qual se comprometera.

Tratado como um arquétipo da alma humana, o mito de Fausto nunca se esgotou, tanto no simbolismo quanto na literatura, sendo revisitado por artistas posteriores à Goethe, como Puchkin, Christian Dietrich Grabbe, Paul Valéry, Fernando Pessoa e Thomas Mann. Fausto também se transformou em temas de peças musicais de compositores clássicos como Wagner, Berlioz, Schumann e Liszt.

No cinema, a primeira representação conhecida do mito surgiu em 1904, em um filme francês dirigido por Georges Fagot para a lendária companhia Pathé Frères. Desde então, pouco mais de vinte produções audiovisuais abordaram o tema, entre elas Fausto (Faust – Eine Deutsche Volkssage, 1926), de F. W. Murnau.

Fausto, de Murnau, foi lançado em 1926, uma época em que o expressionismo alemão já se encontrava em declínio, afetado pela ascensão do nazismo ao poder e pelo pensamento dos próprios realizadores de que o movimento já estava por demais assimilado e, portanto, perdera o seu impacto junto às platéias.

Ele faz parte da última fase da cinematografia alemã de Friedrich Wilhelm Murnau, junto com os prévios A Última Gargalhada (Der Letzte Mann, 1924) e Tartufo (Herr Tartüff, 1925). Assim como os demais grandes expoentes do cinema alemão da época, F. W. Murnau migraria para os Estados Unidos, onde seguiria carreira e realizaria, na seqüência, Aurora (Sunrise: A Song of Two Humans, 1927), considerada por muitos sua obra máxima, até seu falecimento precoce em um acidente automobilístico, antes mesmo de ver lançado seu último filme rodado, Tabu (Tabu: A Story of the South Seas, 1931).

Fausto foi concebido para se tornar um grande marco do cinema da época. Superprodução da UFA – Universum Film A. G., produtora criada pelo estado para fins propagandísticos, mas que naquela época já estava privatizada e voltada para fins comerciais, foi roteirizado por Hans Kyser, baseado em Marlowe, Goethe e no folclore nacional; e para escrever as legendas, a UFA contratou Gerhart Hauptmann, o mais importante poeta alemão da época. Para a cenografia, foram chamados Robert Herlth e Walter Röhrig, os mais conceituados de todo o cinema expressionista, que trabalharam também com o desenho de figurinos, auxiliados por Georges Annenkov. Com toda essa equipe de gabarito comprovado, somado ao alto custo de produção e à maturidade técnica e criativa de F. W. Murnau, era de se esperar que o filme virasse realmente um grande acontecimento.

Contrariando todas as expectativas, o filme foi ignorado por público e crítica, tornando-se um grande fracasso na Alemanha – como consolo, fez relativo sucesso no mercado externo. Siegfrid Kracauer, teórico do cinema alemão, enumerou em seu livro De Caligari a Hitler – Uma História Psicológica do Cinema Alemão motivos deste insucesso: a deturpação dos motivos significativos inerentes ao tema, a vulgarização do conflito metafísico entre o bem e o mal, a prolongada história de amor entre Fausto e Margarida, uma monumental exposição de artifícios capitalizando o prestígio da cultura alemã, obsoletas poses teatrais dos atores e, principalmente, o ressentimento dos alemães em interferências em suas noções tradicionais dos clássicos.

Outra pesquisadora importante do cinema alemão, Lotte H. Eisner, recebeu o filme de outra forma. Eisner, que dedica todo um capítulo a Fausto em seu livro Murnau, declara que este tem a mais importante e pontual imagem do chiaroscuro, quando em seu prólogo mostra o embate entre o anjo e o Mefistófeles. Destaca também o clima mágico produzido, o uso dos efeitos especiais e a contenção na movimentação de câmera (movimentação esta que F. W. Murnau foi o pioneiro em A Última Gargalhada), além de destacar a parte em que crianças aparecem evocando anjos de Botticelli.

A despeito de sua recepção e da época em que foi lançado, Fausto guarda em sua estrutura referências estéticas e narrativas bastante concretas do expressionismo, por mais que não esteja completamente integrado ao movimento – e nenhum outro filme foi, excetuando-se O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920), a referência maior do expressionismo alemão.

Como escreveu Louis Delluc, a arte expressionista, na busca de impressionar o espectador, sacrifica a massa dos detalhes, de inspiração no teatrólogo Max Reinhardt, que de acordo com Luiz Nazário em seu livro De Caligari a Lili Marlene – Cinema Alemão, “se notabilizou pela estilização dos cenários, pela dramatização da atmosfera, pela movimentação de massas no palco, pelo arranjo coral dos coadjuvantes e pela iluminação”. É bem nítida em Fausto a utilização dos três elementos da deformação – a iluminação, a decoração e o jogo de atores – nos momentos fantásticos, isso é, no prólogo e no epílogo, quando entram em cena Mefistófeles e o anjo, entretanto no desenvolvimento do enredo esses elementos são pinçados de forma mais comedida. Enquanto isso, os elementos naturais são praticamente suprimidos, como de praxe, exceto quando o sol se põe para a entrada do demônio em cena, transformando a ação em acontecimento dramático, ou quando arbustos, símbolo de Van Gogh para a claustrofobia social, aparecem quando Fausto está ao ar livre.

Quanto à animização, a tradução plástica por linhas, formas e volumes do drama dos personagens, é notória em Fausto a arquitetura apinhada do vilarejo medieval no qual é situada a história, quase uma colméia, salientando a propensão deste lugar à epidemia de peste negra que o assolará. É também importante salientar os tamanhos minúsculos dos ambientes fechados, potencializadores das angústias e frustrações dos personagens.

Quando o personagem Fausto, já pactuado com demônio, viaja através do mundo até Parma, outra característica expressionista vem à tona: a efusão, a experiência vivida intensamente em detrimento da descrição minuciosa, a busca do próprio testemunho contra a reprodução meramente mecânica. Quanto aos personagens da trama, aquele que recebe maior tratamento é, com certeza, o mais alegórico – no caso, o Mefistófeles interpretado pelo premiado Emil Jannings. Pelas próprias características sombrias do Expressionismo, o horror permeia a narrativa e é visualizado através do personagem de Jannings, o personagem sinistro que concentra o poder em suas mãos, habilmente conduzindo os demais personagens.

Novamente citando Eisner, “a sombra é a pátria da alma alemã” e, portanto, aparece como elemento fundamental na cinematografia da Alemanha do pós-Primeira Guerra. Para os expressionistas, a sombra funcionava como metáfora do inconsciente, da repressão, da clandestinidade e das trevas. Em Fausto, a idéia da sombra atinge clímax dramático quando um agigantado Mefistófeles, sobre a vila medieval, abre sua enorme capa, já dando a idéia de que uma catástrofe está por vir naquele lugar – no caso, a peste negra.

Outros elementos menores do expressionismo também se encontram presentes no filme, como as ruas que exprimem as angústias atemporais e metafísicas, as feiras que simbolizam o caótico da Alemanha pós-guerra, as escadas como símbolo de ascensão espiritual, o livro e sua significação sagrada etc.

Considerando as duas obras em questão, o livro de Goethe e a representação fílmica abordada nesse texto, percebe-se um paralelo muito mais interessante do que a simples questão formal cinematográfica. Toda a espinha dorsal narrativa de Fausto (o livro), para efeito da época em que foi escrito, representa uma conexão com o início da moral burguesa, pois apesar do personagem ter pecado, durante sua trajetória ilícita realizou uma série de avanços para o bem comum, justificando assim suas falhas pelo bem da coletividade, que nada mais é que a base do romantismo, o retrato quase natural da burguesia que nascia com a Revolução Industrial, o fim da aristocracia e o nascimento dos valores da época, como a criação dos filhos, a educação, o dinheiro e a honra pessoal. Esses valores estão incrustados em praticamente todos os filmes de Murnau, com seus personagens sempre vacilando entre a tentação e a racionalidade, e muito particularmente em Fausto.

Outra característica marcante do romantismo, mais especificamente do movimento alemão, é o profundo relacionamento com a natureza e como procuravam representar a perfeição humana. Essa característica fez com que os nazistas se aproximassem dos ideais românticos, principalmente na questão da busca pela raça pura ariana. Para os nazistas, então, essas obras representariam o ideal da beleza, e em contrapartida as obras expressionistas seriam “feias”.

Comentários (1)

Adriano Augusto dos Santos | quarta-feira, 19 de Setembro de 2012 - 09:13

Texto completo por demais.
Explora todo o filme e o acrescenta em muito.
De grande valor.

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