Beto Brant dá um passo na carreira e cria obra ímpar e dissonante.
Logo no princípio de Crime Delicado, penúltimo trabalho do cineasta Beto Brant para o cinema, o personagem do crítico de artes Antônio Martins (Marco Ricca), ao resenhar uma peça teatral, afirma que esta “faz cena após cena um striptease de si mesmo (...)”. Esta frase, bastante pontual, estaria se referindo ao próprio Brant? Afinal, após uma carreira composta por filmes policiais padrões, o cineasta resolveu dar uma guinada e investir em uma obra autoral, de apelo restrito, sem concessões, no qual praticamente se desnuda e se coloca à prova da crítica em algo muito mais pretensioso do que qualquer coisa que fizera antes, claro sinal de maturidade intelectual e artística.
É raro um exemplar como este dentre a filmografia brasileira da Retomada. Crime Delicado pode facilmente dividir opiniões, mas dificilmente passará incólume por aquele que o assisti-lo. É daqueles prodígios que não se entregam facilmente, pois suas nuances não se escondem na superfície, mas sim dentro do obscuro. Interpretá-lo, ou ainda além, absorvê-lo, depende muito mais da formação intrínseca de cada um do que propriamente um conhecimento específico qualquer sobre cinema ou narrativa.
Baseado em obra quase homônima de Sérgio Sant’Anna, é sobre um relacionamento construído pelo já citado Antônio e pela instigante Inês (Lílian Taublib, que causa grande impressão). Algo aparentemente fortuito, iniciado em uma mesa de um boteco qualquer, mas cuja força é desenvolvida em um curto espaço temporal e que acaba por terminar abruptamente. Uma relação de autoconhecimento para ambos - e também de desestabilização emocional: a vida de Antônio é diametralmente oposta à complexidade que seu trabalho exige... simples, solitária e vazia; enquanto Inês, deficiente física, se relaciona excentricamente com um famoso artista plástico, que se apropria do corpo – e da mente – dela para a construção de algumas de suas obras, em uma relação de matizes obscuras.
O roteiro de Crime Delicado, a despeito de toda a sua aura elitista, utiliza-se de um subterfúgio bastante animal para dar andamento à narrativa: a atração carnal, acima de qualquer ilha racional que possa existir no ser humano. O sexo move as personagens, por mais centradas que possam parecer, e todas as relações apresentadas no filme são baseadas neste aparato instintivo, ilustrado perfeitamente em um dos diálogos: “Você não ama nada. Quem é você?”. É nessa dualidade que Brant cria o choque e a complexidade de sua obra, além de todo um requinte na encenação criando algo acadêmico e rigidamente decupado.
A elitização impressa nos fotogramas também está ligada à mistura textual dispersada ao longo de sua curta duração. Além de não esconder sua base literária, e segmentado por seqüências teatrais ilustrativas (muitas vezes cercadas por incógnitas, que só poderão ser conectadas através de muita reflexão), o filme brinca com a própria linguagem cinematográfica ao mudar repentinamente sua cartela sutis de cores para um preto e branco impactante, reforçando a comparação entre delírio e realidade que permeia toda a projeção. Afinal, é provável que a reação costumaz do espectador para com a película é se perguntar o que é fato e o que é ficção, diante do surrealismo permeado em algumas cenas.
Ou será que a idéia central foge a esse propósito e que Brant queira apenas nos apresentar como atores e que nossa sociedade é um grande palco onde encenamos nossas vidinhas tragicômicas? Uma pista é dada na cena em que Antônio se encontra perplexo entre uma moça nua e toda uma platéia aos risos. O cinema é a visão única e intransferível de seu autor, assim como nossas vidas são como queremos que as pessoas nos enxerguem. E a cena final de Inês reflete bem isso.
O debate sobre a fragilidade do ser humano é potencializado quando encaramos que grandes obras só são construídas com grande entrega de seu autor, criando uma posição incômoda deste para seu público e para o conseqüente julgamento. Se for assim, essa dinâmica entre arte e crítica poderia facilmente representada por Inês e Antônio, respectivamente. Mas Brant não facilita e troca os papéis, fragilizando o crítico e colocando Inês como dona da situação – uma situação dúbia, “delicada”. Seria a arte sobrepujando a análise? Essa seria a resposta para a universalidade e temporalidade artística?
Por essa série de indagações que acabam vindo à tona ao assisti-lo, o filme se afirma como obra ímpar e dissonante. Um trabalho que causa atrito, embaralhamento de conceitos pré-definidos e arraigados. Referenciando uma frase de Shakespeare citada no filme, “Crime Delicado” não é apenas uma sombra que passa.
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