Meirelles continua competentíssimo ao aliar thriller e denúncia, obtendo grandes interpretações de seu elenco.
Baseado no livro homônimo de John Le Carré, “O Jardineiro Fiel” conta a história de Justin Quayle (Ralph Fiennes), um diplomata inglês que apaixona-se por Tess (Weisz), uma moça que ao contrário dele nunca está disposta a aceitar passivamente as mazelas a sua volta. Quando mudam-se para o Quênia, Tess se envolve em investigações sobre a ação de grandes grupos farmacêuticos que estariam se valendo da miserável população local como cobaias para seus testes. Depois da suspeita morte da esposa, Justin se embrenha em uma jornada pela busca de respostas que o levará a um mar de sujeira velada da indústria de medicamentos, assim como a uma redescoberta de sua amada e de si próprio. Apoiado em bem estruturado tripé formado por drama, thriller e denúncia, “O Jardineiro Fiel” é um filme de qualidade inquestionável, quer se pense em seu caráter puramente cinematográfico, quer se pense em seu poder denunciativo.
Muito bem sucedido na escolha de seu primeiro projeto em Hollywood, Fernando Meirelles, como em “Cidade de Deus”, mescla competentemente alerta social com um cinema instigante. Isso porque a denúncia não vem solta, mas associada diretamente ao drama e ao thriller, os dois outros pilares do filme. Ela está ligada à formação da personalidade de Tess junto ao público e à reformulação da personalidade de Justin, ou seja, tem fundamento dentro da história. Com isso elimina-se aquele ranso piegas e proclamativo que por vezes acomete filmes que não fazem essa ponte entre a história romanceada e a mensagem a ser transmitida.
O roteiro é decisivo nesse processo. Dividindo-o em dois grandes momentos – um dedicado ao relacionamento entre Tess e Justin e que se estende até a morte dela é o momento de introdução da trama e outro, dedicado à jornada de Justin, é o corpo principal – , os roteiristas acertam em optar por uma estrutura não-linear, com vai-e-vens e flashbacks que ajudam na dramaticidade. Alertas e boas intenções por si só não sustentam filme algum. Com essa consciência, a equipe de “O Jardineiro Fiel” se preocupa (graças a Deus!) com a fluidez do texto, com a construção tridimensional das personagens e com a manutenção do interesse do público durante todo o filme.
Fernando Meirelles reafirma aqui sua competência na direção. Não bastasse o roteiro bem elaborado, Meirelles traduz na tela todo o poder da história. Sua câmera acompanha e sublinha as ações, as imagens seguem precisamente o compasso do texto, rebelando-se nas cenas fortes e assentando-se nas mais introspectivas. Todo o tempo, fotografia e edição formam um vocabulário que dialoga com o fluxo do filme. A linguagem visual é muito dinâmica com inúmeras recursos como variações de cor, enquadramentos inesperados, focos lançados ao léu, objetos passando na frente da câmera e cortes abruptos. Nas locações originais no Quênia, por exemplo, as imagens não se furtam em mostrar a realidade local e embora essas cenas sejam bastante coloridas (para contrapor-se à pálida Europa), elas não mascaram o que se quer exibir. É interessante ainda o uso de metáforas nas imagens como a revoada de pássaros que sucede a morte de alguém simbolizando uma espécie de libertação e como na cena inicial, em que após a despedida do casal no aeroporto, Justin fica sombreado em primeiro plano e Tess segue iluminada até perder o foco, associando-se isso tanto a passividade de Justin e à vivacidade de Tess quanto à morte dela, aos poucos dissolvida na tela deixando sem “luz” a vida dele. A técnica não é usada como fim último, mas como instrumento de fazer o texto chegar ao seu interlocutor.
"O Jardineiro Fiel” brinda o espectador com duas atuações notáveis. Ralph Fiennes conduz um gentleman pacato e fechado a qualquer tipo de exposição que começa a se abrir mediante à presença da radiante Tess e que se revoluciona ao confrontar-se com a dor e com a dureza da realidade aos poucos descortinada. É um trabalho difícil, calcado na maioria das vezes em mostrar a quem assiste o que Justin tenta esconder, mas feito com a sutileza e a intensidade que só um ator com a formação de Fiennes poderia propiciar. Já Rachel Weisz traz o balanço do casal através de uma Tess deliciosamente indolente e magnética, produzindo imediatamente a necessária empatia que a personagem necessita.
Feito em várias frentes, “O Jardineiro Fiel” é competente em todas ao fazer com que cada uma ancore e eleve as outras. É um drama emocionante e comovente sem deixar de ser inteligente, um bom thriller sem se centrar em elementos arquétipos como o vilão duas caras ou as perseguições e uma pungente arma denunciativa já que após o filme é impossível não se questionar sobre a ética da indústria farmacêutica (se o cinema é incapaz de revolucionar, ao menos acende uma faísca). Fernando Meirelles confirma seu traquejo em lidar com textos fortes e difíceis ao transformá-los, com sua lente, em imagens que atingem o âmago de quem assiste.
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