Um documentário leve e descompromissado, que encanta pelo modo como mostra a cultura dos povos retratados.
Até pouco tempo atrás, os cinemas brasileiros eram de praxe fechados a produções estrangeiras – isto é, a leste do Mediterrâneo, uma vez que o cinema americano sempre foi (à exceção da França) o principal núcleo cultural de qualquer país – e vem mudando aos poucos, com uma considerável abertura a outros cinemas, em especial o oriental. Pois este raro exemplar da Mongólia não ganhou nenhum prêmio de grande expressão, não é recostado em nenhum nome de peso (os dois diretores estreantes se encontraram por acaso na Universidade de Munique) e não conta nenhuma estória emocionante e complexa, típica de filmes de festivais e ditos "de arte". É apenas um filme simples e encantador que, num efeito Belleville, tomou os cinéfilos de assalto e se tornou altamente cultuado.
No meio do vasto Deserto de Gobi, no sul da Mongólia, quatro gerações de criadores de ovelhas vivem numa pequena aldeia. É época da cria de camelos, animal bastante estimado na região, principal meio de transporte dos nômades e provedor de lã. Mas um dos camelos está com dificuldades no parto, que acaba durando alguns dias e faz nascer um filhote grande, porém magro. A mãe passa a rejeitá-lo, e nem com a intervenção direta da família a situação melhora, estando ele sobrevivendo apenas pelo leite ordenhado numa mamadeira. A mãe da família entende que é uma necessidade essencial o filhote mamar e ser querido pela mãe e, após consultar o conselho dos nômades do deserto, eles vêem que um ritual antigo precisa ser feito. Os dois filhos mais novos vão então à cidade, buscar um músico talentoso o suficiente para o ritual.
Esta primeira parte se foca em especial na relação da família, e o filme demora a engatar. Após um breve monólogo sobre a lenda dos camelos, somos apresentados à família aos poucos, seus membros e modo de vida, e só ao final da projeção que temos uma noção mais clara de quem é quem na hierarquia. Na verdade, o grande foco do filme é a relação cultural da trupe, sendo este breve problema com os camelos apenas mais um momento da vida no deserto. Apesar de ter um estilo ficcional, com uma omissão completa da figura do diretor, ou mesmo da equipe (se é que havia uma), e planos parados e trabalhados, com uma belíssima fotografia da paisagem montanhosa das planícies, este é um trabalho estritamente documental, patrocinado pela National Geographic. A família de fato é verdadeira, vive naquele ambiente e daquela maneira, assim como as situações, todas acompanhadas pela dupla de diretores, que originalmente se propunham a fazer um filme sobre o povo do deserto, uma vez que os antepassados da diretora Byambasuren Davaa vêm desta linhagem; o drama do jovem camelo rejeitado foi apenas um acontecimento registrado pela câmera. Este estilo, o mesmo usado por Robert Flaherty em muitos de seus filmes, como Nanook do Norte e O Homem de Aran, pode ser confundido com uma ficção ensaiada, ou mesmo com o cinema véritè, mas não é nenhum dos dois; tem um pouco de ficção embutida, mas é principalmente uma questão de estilo. A câmera está a favor dos habitantes, e vai retocando a história aos poucos, e com um grande tino para captar imagens, como o conturbado nascimento do filhote e uma fortíssima tempestade de areia e sua conseqüência (algo que lembra a tempestade captada em ABC África).
Se a primeira parte do filme correspondia às nuances do estilo de vida daquele povo, que certamente tem o toque de sensibilidade da diretora Davaa, natural do país, a segunda parte é marcada por um forte estilo antropológico, um olhar vindo de fora, mais especificamente do diretor italiano Luigi Falorni. Os dois irmãos saem da comunidade culturalmente fechada do deserto e, à medida que vão se aproximando da cidade, diferenças marcantes começam a aparecer, em especial a presença de postes de energia. Tendo energia elétrica você pode ter uma televisão, e assim, estar conectado ao mundo exterior, e o fascínio do pequeno Ugna pelo novo mundo é claro, ele que é o mais novo e o menos enraizado na própria cultura. O contraste é tão grande, ainda mais para um país com tão baixa densidade demográfica, que a simples presença da cultura ocidental é uma enorme ameaça à cultura local, que pode ser visto não só por Ugna, mas o próprio avô do pequeno, por definição patriarca da família e defensor dos costumes, tem um rádio a pilhas em sua tenda. Esta silenciosa ocidentalização do oriente é um dos maiores problemas do continente, e já fora alertado em outras ficção-documentários, como o também cultuado Balzac e a Costureirinha Chinesa e o épico religioso Samsara.
Mas este está longe de ser o foco principal do filme. Tampouco é ele um drama sobre o pobre animal. Quem espera um filme lento e com fortes questões como no cinema iraniano, irá se decepcionar; os planos são curtos e o ritmo flui bem tranquilamente. Ele também se isenta de julgamentos, preferindo deixar a realidade falar por si, apesar da leve maquiagem ficcional; o músico, que, apesar de dar aulas de violino num instituto de música moderno, preserva as tradições do ritual, e a cena onde todos os membros da família, o músico e o motorista da moto sentam para conversar pode sugerir um diálogo entre os dois pontos de vista, mas isto é algo posto para o espectador tirar suas conclusões. No final, é apenas um documentário, leve e descompromissado, sobre uma família de habitantes do deserto e sua cultura milenar. Correção: leve, descompromissado e encantador.
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