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Cidadão Kane

(Citizen Kane, 1941)
8,8
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Críticas

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Um filme absolutamente imortal, uma das obras mais importantes da história do cinema.

10,0

Engraçado como a mente de um gênio funciona. Com pouco mais de 20 anos, Orson Welles dirigiu, produziu e roteirizou uma das maiores obras-primas da história do cinema. Nesta matéria, comentarei o filme em si, sua repercussão na época, algumas curiosidades, sua atualidade, o quão serviu para a evolução das técnicas do cinema e muito, muito mais. É complexo falar de Cidadão Kane; é complexo assisti-lo; é complexo entender sua importância.

É impossível falar do filme sem levar em conta a época que fora realizado. Se ainda hoje tem impacto e denuncia toda a sujeira por trás do sistema jornalístico mundial, imagine o apocalipse que causou na década de 40, tradicionalista e cheia de regras de conduta? Um personagem sujo, egoísta, egocêntrico, no meio de tantos galãs? Uma guerra começando e a denúncia ali, na tela? Era muito para as pessoas. Diversas abandonavam as salas de cinema revoltadas, e o filme foi muito mal em diversas críticas.

Ele começa com uma cena curiosa. Um castelo, que em breve sabemos que se chama Xanadu, com uma placa de “afaste-se” pendurada na grade e uma câmera que vai passeando por ele até uma janela. Até aí nada demais, para nós que estamos acostumados com uma certa linguagem no cinema, mas teve um significado muito maior na época. Depois a cena transição para dentro do castelo, outro recurso técnico inovador, vemos uma pessoa segurando uma bola dizendo “Rosebud”. Logo depois, ele a solta, entra uma enfermeira na sala e vemos que o homem está morto.

Tem-se início um documentário. Através dele descobrimos que quem acabara de morrer é ninguém mais ninguém menos que Charles Foster Kane, um dos homens mais importantes da época. O documentário tem duração de mais ou menos 10 minutos e mostra tudo resumidamente o que será aprofundado pelas próximas duas horas de Cidadão Kane. A partir daí, vemos quem está realizando o tal documentário, e que o mesmo não está satisfeito com o resultado provisório apresentado. Na tentativa de tornar o conteúdo mais interessante, ele coloca seus jornalistas atrás da resposta sobre uma questão que será a espinha dorsal do filme: o que diabos significaria “Rosebud”, a última palavra proferida pelo gigante Kane?

A genialidade de Welles entra junto com essa palavra, pois como poderiam saber qual foi se Kane estava sozinho na hora que a pronunciou? Welles jogou sabiamente com isso, e os mais despercebidos com certeza não notaram esse sutil detalhe. É como se nós, o público, tivéssemos espalhando a notícia. Isso mostra a profundidade do filme já na primeira cena. É como se fosse um aviso, “preste atenção em mim o tempo inteiro, porque nada aqui está por acaso, tudo tem seu significado, seu valor”. Realmente, é preciso ver Cidadão Kane com dois olhos, um de avaliador e outro de apreciador. Se possível, inúmeras vezes.

Na jornada para descobrir a resposta que procura, o jornalista Thompson (William Alland) entrevista diversas pessoas que mantiveram um forte contato com o magnata: sua ex-mulher (Dorothy Comingore, como Susan Alexander), seu antigo melhor amigo (Jedediah Leland, interpretado por Joseph Cotten), seu mordomo, etc. E a cada encontro uma nova história é contada, sempre de modo magnífico, trabalhando cada vez mais os personagens, evoluindo, fazendo transformações. As interpretações sempre perfeitas, com Welles extraindo tudo de seus atores. O modo como essa história é contada foi uma revolução para a época, por causa da narrativa não-linear. É necessário a atenção do espectador para colocar em ordem tudo o que o filme está apresentando. Nunca um filme havia utilizado tal sistema de flashbacks antes (sim, flashbacks já haviam sido usados, mas nunca dessa forma, assíncrona, para construir a história; eram utilizados apenas para esclarecê-la).

O interessante é que a descoberta do que seria “Rosebud” acaba se tornando um plano de fundo para descobrirmos o quão longe um ser humano pode chegar. Não é o verdadeiro foco do filme, e sim o trabalho sobre o personagem de Welles. Esse foi o primeiro grande impacto real que o filme causou sobre as pessoas, pois como falei acima, Kane não era o grande galã que elas estavam acostumadas a ver nas telas da época. Isso causou um repúdio ao personagem, acentuado ainda mais pelo jornalista William Randolph Hearst, que acreditava que muitos dos acontecimentos do filme foram baseados em sua vida real (e foram mesmo, o número de ‘coincidências’ é enorme). Ele começou uma forte campanha anti-Kane que afundou ainda mais o já sujo filme. Foi vaiado pelos poucos espectadores que não saíam do cinema ao final. O enredo, fazendo fortes críticas ao sistema jornalístico da época, é assinado por Herman J. Mankiewicz e o próprio Welles. Ousado, inovador, profundo, faturou o Oscar da categoria (mesmo com toda essa explosiva energia contra o filme, que das oito indicações, só ficou com essa).

Logo na cena de abertura, onde vemos o portão em primeiro plano e o castelo no segundo, é o primeiro aspecto técnico impressionante, afinal, era a primeira vez que a profundidade de campo era usada intencionalmente em um filme. Orson Welles trabalhou, durante toda sua duração (e brincando nesse começo), sobre a importância do que acontecia em primeiro e em segundo plano. Ele e seu Cidadão Kane foram os grandes responsáveis por talvez o recurso mais comum hoje em dia no cinema. Impossível um filme não se aproveitar dessa técnica. Outro ponto legal é a passagem do exterior do castelo para o interior, com a fusão de películas e um longo travelling. Isso era outro fator inédito, esses movimentos com a câmera, até então nunca utilizados. Se Griffith inventou a linguagem cinematográfica, foi Welles que a aperfeiçoou e deu as ferramentas para todos os diretores trabalharem com ela.

A direção de arte teve um papel importantíssimo, mesmo que passe despercebida para os espectadores casuais (bem, hoje em dia eles não existem mais, mas estou considerando a época em que foi realizado). Como o filme abrange diversos anos da vida de Kane, é impossível não perceber o belo trabalho da maquiagem. O modo como Welles foi transformado, envelhecendo anos junto com Kane é fantástico. Ah, vale citar que nem todos os cenários eram realmente o que apareciam. Muitos foram construídos pela metade para cortar custos e Welles mais uma vez provou sua competência ao fazê-los crescer frente às câmeras. No documentário inicial, por exemplo, foram usadas diversas imagens de arquivo para baratear a obra o máximo possível.

A fotografia é outro fator importantíssimo para o filme. Ao contrário do Expressionismo Alemão, que utilizava das sombras para tornar o protagonista parte do cenário, Gregg Toland (o fotógrafo do filme) utilizou o jogo de luz e sombras para dar o clima dark que queria. Sempre que Kane ia revelando seu lado negro, fazendo suas peripécias somente pensando em si, a sombra dominava o cenário, geralmente o encobrindo. O enquadramento foca tanto os primeiros planos como os segundos, sempre jogando com isso, diversas vezes mostrando o teto dos cenários, brincando com o tamanho aparente e seus egos no momento.

O que pode ter sido a gota d´água para Randolph processar Welles e fazer todo o estardalhaço anti-Kane (o que hoje em dia poderia acabar influindo a favor do filme, já que todos ficariam curiosos para saber qual bomba seria esta fita) não deve ter sido o modo como ele estripou o caráter de Kane. Não deve ter sido todo o repúdio ao jornalismo e as pessoas que se sentiram ofendidas com isso. Deve ter sido justamente a palavra Rosebud, o coração do filme. Welles poderia ter escolhido qualquer outra palavra no mundo, mas por que ele foi colocar justamente o nome como Randolph chamava o clitóris da amada?

Falei, no início dessa matéria, que o filme se mantinha atual, apesar de já ser sexagenário. Mas, por que? É bem simples. É só ver que todas essas críticas, toda essa sujeira que é percebida até hoje quando o assunto é jornalismo, onde uma TV especializada, por exemplo, deixa de dar uma importante notícia só porque uma pessoa que já foi famosa já não é tanto hoje em dia. É só ver o que uma pessoa faz para se manter por cima, ver todas as pessoas que ela não faz questão de pisar para que seu ego continue alto. É natural. Não que seja certo, mas está no sangue do ser humano, não há como negar as origens.

Na restauração da imagem e do som, para que uma boa qualidade fosse alcançada, foi necessário um trabalho foto-químico digital em uma cópia guardada no MoMA, já que a original havia se perdido em um incêndio. Por pouco não ficamos sem um dos maiores clássicos do cinema, considerado por muitos críticos como o melhor filme já feito de todos os tempos.

O reconhecimento veio com o tempo. Não que Welles tenha feito uma obra tendo em vista que ela fosse amadurecer e ser reconhecida com o passar dos anos, isso aconteceu naturalmente, talvez impulsionado pelo impacto causado na época. As pessoas ficaram curiosas, estudaram o filme e perceberam o talento do jovem diretor de apenas 25 anos, todo o seu simbolismo, sua inovação e, principalmente, sua importância dentro do cinema. É triste ver que um gênio como esse passou muita dificuldade na vida, enquanto algumas pessoas que se consideram diretores hoje em dia nadam nos cifrões de Hollywood.

Pode ser que nem todos gostem tanto assim da história de Cidadão Kane, mas, analisando toda a sua importância, o filme é impecável. Um grande clássico do cinema que deve ser assistido por todos, não importa a idade, o sexo, os valores humanos. Inesquecível, um filme que estará vivo facilmente por outros 60 anos.

Comentários (1)

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 23 de Novembro de 2013 - 18:09

Um marco na história do cinema, embora eu discorde de quem diz ser o melhor filme de todos os tempos, como já vi afirmarem.

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