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Perfis

Foto de David Lynch

David Lynch

Idade
78 anos
Nascimento
20/01/1946
País de nascimento
Estados Unidos
Local de nascimento
Missoula, Montana

Conheça a carreira de um dos mais "loucos" cineastas em atividade.

"O balbuciar de um bêbado"

Este parecer, dado pelo então professor da Universidade de Princeton, Albert Einstein, às obras de Karl Jaspers, foi a melhor maneira que encontrei de começar este artigo. Afinal, é assim que a maioria das pessoas se sente em relação a David Lynch, e é certamente a impressão que nos dá aos assistirmos pela primeira vez um filme dele. Esquisitices sem nexo postas ao acaso na narrativa. Não que não sejam também um pouco isso, mas as obras dele são bem mais profundas do que aparentam - um tema em si predominante nos filmes dele. Para começar, devo esclarecer que Lynch não é um surrealista (estigma essa tão freqüente e irritante quanto classificar Bresson como austero). O que temos em Lynch é uma constante busca pela 'imagem diferente'; uma imagem arrebatadora e inesquecível, cuidadosamente trabalhada, e que, por vezes (mas não sempre) utiliza-se do surreal e do obscuro para causar impacto, e fazer-nos entrar no clima. Clima: essa sim é uma boa palavra para definir a obra do diretor.

Há de se perceber também que Lynch não é um diretor de cinema, e sim um artista que se utiliza do meio cinematográfico para se expressar. Mas não somente isso, também faz pinturas, fotografias, esculturas, desenho, animações, música... Ele nunca teve uma carreira artística legítima como Jean Cocteau ou Peter Greenaway, mas já houve e ainda há diversas mostras com seus outros materiais. Nascido em 20 de janeiro de 1946 numa cidadezinha no interior dos Estados Unidos, e passando boa parte da infância se mandando de um local para outro, ele diz ter tido seu primeiro contato com arte aos 14 anos. Naquele tempo, era impensável para ele que um adulto fosse fazer desenhos - quanto mais viver deles - até que um colega lhe disse que o pai era pintor profissional. A partir de então, Lynch pôs na cabeça que era o que iria fazer e, aos 19 anos, ingressa na Academia de Belas Artes de Pensilvânia, na Filadélfia. Começando com pinturas abstratas, seus quadros logo ganharam um aspecto mórbido quando, enquanto esperava a tinta de uma recém-pintada tela secar, uma mariposa bate nela e gruda na tinta, ficando lá até morrer. Lynch gostou tanto dessa dicotomia entre o vivo (a mariposa) e o morto (a pintura em si), que não só deixou-a lá, como passou a pôr em seus outros quadros objetos do mundo real, animais mortos, folhas secas ou um pedaço de bife. Sua aproximação com o cinema se deu numa experiência que teve quando, ao observar um de seus quadros, ouvi o vento soprar, e era como se a folhagem na pintura estivesse se movendo. Percebendo a maior limitação das artes plásticas (a imobilidade), Lynch decidiu incluir movimento em seus quadros, e fez seu primeiro curta de animação, Six Figures Getting Sick (1966), onde seis cabeças esculpidas por ele aparecem vomitando 6 vezes seguidas. Ele ainda viria a fazer mais dois curtas, The Alphabet (1968) e The Grandmother (1970), antes de se mudar para Los Angeles.

Seus anos passados na Filadélfia foram um eterno tormento para ele, onde se viu perdendo o controle de sua vida, engravidando sua namorada e se vendo obrigado a casar com ela. Todo esse pesadelo claustrofóbico e sentimento de ter perdido o tato com o real (ou o que lhe era entendido como real), juntamente com a assustadora paisagem industrial de Pensilvânia, viria a se transformar no primeiro longa-metragem do diretor, Eraserhead (1976). Nele, Henry (Jack Nance, num dos muitos alter-egos de Lynch) parece estar preso a esse estranho mundo onde nada faz sentido, quando sua namorada lhe diz que está grávida e teve um filho. Só que o filho é, na verdade, uma espécie de monstro (numa alegoria à sua filha, Jessica Lynch, que nasceu com os pés disformes), e sua namorada não agüenta os constantes choros da criança à noite, deixando-a aos cuidados de Henry, que se vê escravizado pela constante atenção necessária ao filho. Esse filme, feito ao longo de sete anos com verbas esporádicas da AFI, logo se tornaria um cult absoluto nos midnight movies, atraindo a atenção de ninguém menos que Mel Brooks. Este estava querendo produzir um filme e, ao assistir à Eraserhead, contrata imediatamente Lynch para ser o diretor. O filme que saiu desta parceria, O Homem Elefante (1980), conta a estória real de John Merrick, um homem na Inglaterra vitoriana nascido extremamente deformado, e usado como aberração circense. A fotografia em chiaroscuro, o tom barroco e dramático do filme fez com que Brooks retirasse seus créditos como produtor (com medo que sua fama de comediante desse às pessoas a impressão errada), e deu à Lynch sua primeira indicação ao Oscar de Melhor Diretor.

Com todo o sucesso deste filme, ele é convidado por Hollywood a dirigir a adaptação da ficção-científica Duna, de Frank Herbert, e é a ele dado um orçamento astronômico para seus padrões. Mas Lynch nunca se adaptou ao modelo estúdio de se fazer filmes e, junto com sua inexperiência quanto a filmes de grande escala e à não terem lhe dado o direito ao final-cut, Duna (1984) foi um grande fracasso tanto do ponto de vista monetário quanto crítico. Em minha opinião, esta foi a melhor coisa que já aconteceu com Lynch, uma vez que isso lhe permitiu desvencilhar-se do chamado 'sistema', e voltar para os filmes autorais, de onde nunca mais saiu. Mas ele foi esperto; ao fazer o contrato de Duna com seu produtor, Dino de Laurentis, ele concordou apenas caso a produtora bancasse seu próximo filme, e lhe desse total liberdade de produção. Dessa segunda parceria dos dois, nasceu o filme que botou por definitivo a carreira do diretor nos holofotes jornalísticos.

Veludo Azul (1986) tem como palco um dos temas preferidos do diretor, que é a da calma cidadezinha interiorana. Nela, Jeffrey (Kyle MacLachlan, grande habitual do diretor) é um pacato cidadão de sua aparentemente perfeita cidade, até descobrir num descampado uma orelha humana. Isso o leva a uma espiral no submundo do crime que habita embaixo do nariz de todos, indo de encontro ao psicopata Frank e à cantora Dorothy. Todo o sucesso do filme rendeu-lhe sua segunda indicação à Melhor Diretor no Oscar, e começou aqui sua eterna parceria com o compositor Angelo Badalamenti. Lynch, 4 anos depois, é convidado a fazer um seriado de televisão nos mesmos moldes de Veludo Azul, e disso sai, numa parceria com o roteirista Mark Frost, Twin Peaks, um seriado que se tornou amplamente cultuado e redefiniu o conceito de programa televisivo. Aqui temos novamente a cidade de interior, desta vez a Twin Peaks do título, localizada na fronteira oeste dos Estados Unidos com o Canadá, na região das grandes tundras. Em Twin Peaks, o conceito do 'debaixo do tapete' é levado ao extremo quando é encontrada morta Laura Palmer, adorada garota da cidade e líder de torcida, embrulhada em plástico e com sinais de estupro e uso de drogas. Isso leva à cidade o agente do FBI Dale Cooper para investigar o caso, e lentamente percebemos que todos na cidade tem algo para esconder. A primeira temporada, que teve apenas sete episódios mais um piloto, o que rendeu uma segunda temporada, desta vez bem maior. Lynch comandou a série até meados desta nova temporada, quando se revela o assassino de Laura; mas o público não estava pronto para deixar Twin Peaks e seus habitantes e a série continua, enquanto Lynch toma 'férias' dela para trabalhar num outro longa, Coração Selvagem (1990), uma adaptação do livro homônimo de Barry Gifford.

Temos aqui Sailor e Lula, um casal moderno que vive uma intensa paixão enquanto tenta escapar da mãe de Lula, que é contra o namoro. Eles então caem na estrada, fugindo de um grupo de assassinos profissionais, numa jornada pelo bizarro, onde apenas o amor dos dois parece impulsioná-los para frente. Aqui Lynch começa a flertar novamente com o universo que ele criara em seus curtas e Eraserhead, e o filme não vai muito bem em sua terra natal; mas é amplamente visto na Europa, e ganha a Palma de Ouro em Cannes no ano seguinte. O diretor volta então à Hollywood, apenas para ver uma Twin Peaks completamente desvirtuada de sua idéia original, trocando todos os conflitos e complexidade por uma trama boba e em dissintonia com o resto da série. Ela já não dava mais tanto sucesso e uma terceira temporada não iria ocorrer, o que impossibilitava Lynch de botá-la novamente nos trilhos. Não satisfeito de abandonar sua criação naquele estado, ele dirige um último episódio da série, e sai para fazer um longa-metragem que serve de prelúdio para a estória, Twin Peaks - Os Últimos Dias de Laura Palmer (1991). Neste filme, o ambiente da falta de tato com o real e do bizarro tomam conta, e vemos uma Twin Peaks extremamente sombria; acompanhamos a ultima semana de Laura Palmer, suas interações com os personagens e como ocorreu o crime. Os fãs da série detestaram o filme, acusando-o de faltar com o humor característico dos personagens, e de não explicar nada, só confundir ainda mais; enfim, acusaram Lynch de ter pervertido a série. Só que Twin Peaks nunca foi tão Lynch como agora, e este mostrou o que teria saído caso ele e Frost tivessem tido total liberdade de criação.

Com o estrondoso fracasso de seu último filme, Lynch entra num hiato que dura seis anos, fazendo apenas algumas produções para a televisão aqui e acolá, assim como alguns comerciais. Aparece então a oportunidade de fazer um novo longa, A Estrada Perdida (1997), que por fim define o sentimento dos espectadores em 'amor à Lynch' e 'ódio à Lynch'. Aqui, o diretor faz um projeto semi-experimental misturando música eletrônica e videoarte a uma narrativa fragmentada, e um roteiro (co-escrito por Barry Gifford) que não parece fazer sentido. Temos Fred, um jazzista que mata sua mulher por ciúmes e é condenado à pena de morte. Na prisão, ele passa a ter alucinações, e cria uma outra persona totalmente oposta a si, o jovem Pete, que é levado por Alice a cometer um assassinato. O filme virou cult, mas foi completamente massacrado pela crítica como uma picaretagem, uma divagação sem sentido. "O balbuciar de um bêbado". Como resposta, ele então dirige História Real (1999) uma produção tão serena e fora de seus padrões que quase não dá para notar a mão dele; 'quase', eu disse. Desta vez foi o contrário, o filme foi aclamado pela crítica, mas preocupou os fãs, que temiam que o diretor fosse abandonar de vez o estilo que o deixou famoso. Três anos depois veio a tranqüilizadora resposta.

O ano de 2000 marcaria o retorno de Lynch à televisão, visando uma nova série sobre o submundo do crime de Los Angeles, para reprisar o sucesso que teve Twin Peaks. Mas os tempos haviam mudado, a televisão estava entrando numa faxina moral contra a violência e temas pesados, e a série, depois de ter seu piloto gravada, foi cancelada pelo estúdio. Só que Lynch, muito cultuado na França desde seu Coração Selvagem, leva o piloto para o estúdio francês Canal +, que decide liberar a verba para mais uma hora de filmagem, e transformá-lo num longa. Depois de muito pensar em como condensar as várias estórias espalhadas pelo piloto, vem como um estalo à Lynch numa noite e, usando elementos já trabalhados em Estrada Perdida, ele termina o seu mais recente longa, Cidade dos Sonhos (2001). Nele, vemos duas versões de uma mesma estória, o sonho e o pesadelo, onde personagens trocam de nome e identidade, num conto de amor e ciúmes na chamada 'fábrica de sonhos' que é Hollywood. Este filme pego a todos de surpresa, fazendo um sucesso enorme tanto de bilheteria quanto de público, ganhando o prêmio de melhor diretor em Cannes, e Lynch recebendo sua terceira indicação à melhor diretor no Oscar.

Dentre filmes tão diferentes, podemos ainda assim notar a marca do diretor em cada quadro e, apesar dele ter suas situações tipicamente “lyncheanas”, o que está mais presente é o som. Lynch sempre trabalhou muito com o som, e de forma tão peculiar que poderíamos fechar nossos olhos e reconhecer qualquer filme dele apenas por este aspecto. No começo do cinema falado, muitos críticos apontaram a nova tecnologia como a morte do cinema, que se havia acabado o mistério e o refinamento, apontando para uma arte banal e vazia. O problema é que, na época, as pessoas não sabiam direito como usar o som (e ainda não sabem), mas Lynch foi dos poucos a realmente entender seu funcionamento. Todo clima do filme vem do som, feito sempre pelo próprio Lynch (inclusive, este às vezes pensa no som antes de pensar no próprio filme) e por seu compositor habitual, Angelo Badalamenti. Esse clima de terror e medo que predomina em seus filmes seria impossível caso o filme fosse mudo. O medo de que falamos aqui não é o horror puro - aliás, quase nunca tomamos sustos nos filmes dele - mas sim um medo trabalhado, sempre crescente, que por horas quase nos sufoca; um medo do desconhecido, a falta de tato com o real que os personagens sentem transcendendo a tela e se mantendo em animação suspensa, ad infinitum. Todo esse clima é produzido pela estranheza ao som em si, como se ele estivesse em um constante jogo de frustração entre o que percebemos como real e o que de fato está (ou não está) acontecendo.

Quero ressaltar outros dois aspectos da obra de Lynch que têm papel pivotal na elaboração do clima. O primeiro diz respeito à direção de arte: se em seus dois filmes preto-e-branco - Eraserhead e Homem Elefante - havia um intenso jogo de luz e sombra, remetente do cinema noir e do expressionismo, para criar a visão de um mundo não-natural, é no uso das cores que ele se destaca. Cortinas vermelhas são uma presença quase que obrigatória em seus filmes, e elas sempre anunciam a chegada de algo inesperado, uma mudança de eventos; quando vemos as cortinas pela primeira vez em Veludo Azul, é quando deixamos a pacata cidade e penetramos em seu lado obscuro, com o aparecimento de Frank Booth; em Twin Peaks, a famosa seqüência do sonho é toda dada em uma sala cercada de cortinas vermelhas; em cidade dos sonhos, a primeira vez em que tomamos a noção da grandiosidade do problema é numa sala com cortinas vermelhas, onde um anão, chefe do submundo, dá as ordens para acharem Rita; em Estrada Perdida, vemos as cortinas no apartamento de Fred pouco antes de ocorrer o assassinato. Aliás, este apartamento como um todo é extremamente macabro, com seus longos e escuros corredores dos quais queremos fugir, mas a câmera nos obriga a entrar. Apenas com uma arquitetura arrojada (bem moderna, nada de casa-dos-horrores) e jogos de iluminação, Lynch transformou o lar - por si só, nosso abrigo contra as mazelas do mundo - em algo assustador, que nos suga para dentro, um reflexo do mal que paira lá fora. O mesmo ocorre em Twin Peaks e Veludo Azul, onde o ambiente de familiaridade da cidade é desmascarado, e não reconhecemos mais a proteção que nosso lar nos proporciona (respectivamente, os reflexos de Bob na casa de Laura, e a orelha decepada na vizinhança).

O segundo aspecto diz respeito ao duplo. O duplo é uma característica também bastante presente, e novamente serve para realçar o sentimento de estranheza para com aquilo que conhecemos, ou aquilo que aceitamos. O duplo é tudo aquilo que nós não somos, seja aquilo que queríamos ser ou aquilo que queremos esconder. Em toda sua obra, Lynch cria vários duplos de si mesmo, sendo os dois mais famosos (e óbvios) Henry Spencer de Eraserhead e o agente Dale Cooper de Twin Peaks, mas também poderíamos citar Jeffrey de Veludo Azul, o pai de Lula em Coração Selvagem e Adam Kesher de Cidade dos Sonhos. Entre os personagens, o duplo começa a aparecer em Veludo Azul, com a constante indecisão de Jeffrey pela misteriosa e perturbada Dorothy (que aqui assume o papel de mãe) e a inocente e calma Sandy (que assume o papel de irmã). O duplo voltaria a aparecer em Twin Peaks com Madeleine, prima de Laura; Madeleine é alegre, introvertida, todas as qualidades que a impressão de Laura passava aos outros eram na verdade da prima, além do fato de uma ser loira e a outra morena, e ambas serem interpretadas pela mesma atriz. Essa dicotomia do positivo/negativo voltaria a aparecer em Estrada Perdida, onde temos Alice como a projeção de tudo que Fred gostaria que sua esposa Reneé fosse - fiel, apaixonada, amável... Mas o duplo não serve meramente como uma antítese a alguém, ele é um reflexo da pessoa. Alice é um reflexo de Reneé, e Fred começa a perceber isso ao olha uma foto onde estão as duas e perguntar "Essa é você? Ambas são você?". O duplo serve como um tapa na cara, um convite à realidade, como se dissesse 'isto é você, esta é a realidade que você não quer enxergar'. Em Cidade dos Sonhos, temos vários duplos; a começar com o casal principal, Betty e Rita. Betty é esperançosa, confiante e independente, enquanto Rita é a mulher indefesa, que não se lembra de nada e que certamente morrerá sem a ajuda da companheira; já na versão do pesadelo da estória, as duas trocam de papéis, e Betty passa a se tornar a dependente, inclusive ficando louca quando Rita a deixa. Também temos nesta parte todos os outros personagens aparecendo com nomes e personalidades diferentes, duplos de si mesmos, convidando Betty/Diana a enxergar a realidade - "Time to wake up, pretty girl".

Electriiiiiiiiiiiiicity

Outro elemento predominante na obra “lyncheniana”, talvez mais que todos os outros, é a presença de eletricidade. Sempre há eletricidade, seja na forma de uma lâmpada, um raio, ou uma corrente vinda deus-sabe-de-onde, e os personagens parecem atraídos a ela, como insetos. Mas, ao contrário do que pode parecer, a eletricidade não é um aspecto bom; ela não está lá para nos ajudar, e sim para nos atormentar. Vivemos na escuridão, cegos aos problemas que ocorrem à nossa volta, e a eletricidade serve como um veículo para nos mostrar a realidade. É como um grande tapa na cara, um balde d'água na cabeça, onde acordamos e vemos o mundo como ele realmente é. Isso não ocorre com a luz do sol, pois, durante o dia, todos são amáveis; é durante a noite que a máscara social cai, e a eletricidade nos permite ver o que há por trás dela. Isso é mostrado bem em Veludo Azul, quando Frank Booth, após ter estuprado Dorothy, apaga as luzes e diz "Agora está tudo escuro". Esta frase pode ser muito bem traduzida por 'agora está tudo bem', como se voltássemos à aconchegante escuridão. Mas não é isso que ocorre, uma vez que já não somos mais ignorantes quanto à realidade, e voltamos à escuridão com medo. Lynch nos apresenta então à dois escapismos: o suicídio e a ilusão. Em Estrada Perdida, Fred percebe pela primeira vez os seus atos ao contemplar a lâmpada em cima de sua cela, e cria a ilusão de Pete e Alice, reflexos idealizados de sua própria vida. Mesmo quando a ilusão acaba ele permanece nela, em sua eterna fuga (aliás, neste filme temos a constante presença de correntes elétricas vindas do nada, como se quisessem chamar Fred de volta à realidade); tanto Henry de Eraserhead quanto John Merrick de Homem Elefante buscam a morte para fugir da realidade; Diana em Cidade dos Sonhos tenta ambos, falhando na ilusão e suicidando logo em seguida. A única exceção é a do velho Alvin de História Real, que, ao observar os relâmpagos em sua casa, resolve tomar responsabilidade e enfrentar a estrada atrás de seu irmão, surgindo assim como uma alternativa mais otimista frente ao absurdo. Há também muita especulação sobre a eletricidade como um veículo aos chamados 'monstros' de Lynch, então abrirei um breve parênteses para falar dessas criaturas.

Os monstros “lynchenianos” não são propriamente reais, e sim manifestações do real. Eles são uma forma quase metafórica de nos mostrar a realidade, aquilo que não queremos enxergar. É como aquele medo de infância de olharmos embaixo da cama ou dentro do armário e virmos lá um monstro; Lynch nos diz que sim, eles estarão lá assim que ligarmos as luzes. O Homem Misterioso de Estrada Perdida é a personificação do ciúme de Fred pela traição da esposa, e a primeira vez que o percebemos é numa gravação de vídeo; tanto Frank Booth em Veludo Azul quando Bobby Peru em Coração Selvagem nos mostram o lado negro e violento do mundo à nossa volta; o Bob de Twin Peaks é a própria manifestação do mal presente no assassino de Laura, enquanto o mendigo de Cidade dos Sonhos é o detentor da caixa azul (realidade), assim como 'aquele que controla tudo'; em Eraserhead temos tanto o bebê, que mostra a Henry seu novo universo de responsabilidades ao qual está preso, e a mulher do aquecedor elétrico, que leva o rapaz ao suicídio; assim como o personagem de David Bowie em Últimos Dias de Laura Palmer e o cowboy de Cidade dos Sonhos, ambos vindos de um pique de luz, e ambos carregando consigo a percepção da realidade. Todos estes personagens (e outros) estão de alguma forma conectados à eletricidade, e todos são a catapulta inicial para o desabar daquilo que temos como palpável. A eletricidade também pode ser vista como luz artificial, uma crítica à artificialidade do mundo vista na paisagem industrial de Eraserhead, nas 'cidades perfeitas' de várias outras obras, e à própria artificialidade do cinema, vista em Cidade dos Sonhos. Não é à toa que no Clube Silencio deste filme, a realidade seja reproduzida fielmente através de aparelhos eletrônicos.

Há outros elementos presentes na sua obra, mas em geral remetem ao que já foi abordado aqui, como a freqüente presença de telefones pretos, que sempre tocam, mas parece nunca ter ninguém na outra linha. As já citadas cortinas vermelhas, o fogo e a pirotecnia em geral como símbolo da fragilidade psicológica do personagem no momento, as famosas cantoras de cabaré, várias cenas de estrada, tanto para escapar da realidade quanto para encontrá-la, e uma fixação por olhos, bocas e dentes. Outra marca de Lynch são seus atores; ele teve vários regulares durante a carreira, com destaque especial para Jack Nance (seu maior colaborador até Estrada Perdida, quando faleceu após o filme), Laura Dern, Kyle MacLachlan, Isabella Rossellini, Dennis Hopper e o famoso anão Michael Anderson. Seu trabalho de ator também é bastante conhecido; Sheryl Lee, que interpretou Laura/Madeleine em Twin Peaks, conta que foi chamada para fazer o teste, e tudo que fez foi conversar com Lynch sobre diversos assuntos, nenhum relacionado ao seriado; a presença de Bob no seriado foi dada totalmente ao acaso, uma vez que o ator Frank Silva (que na verdade era apenas uma ajudante na produção) apareceu sem querer refletido num espelho durante uma cena, Lynch achou aquilo fantástico e resolveu incluir o sujeito com aquela mesma expressão no episódio seguinte, e assim escreveu todo o papel para Bob; Robert Blake, que fez o Homem Misterioso, disse que tinha uma idéia de como o personagem seria fisicamente, e Lynch pedir para que ele lhe mostrasse, e não falasse. Blake então foi ao camarim, raspou o cabelo, pôs uma forte maquiagem kabuki, se vestiu de preto e, para sua surpresa, o diretor adorou. São apenas detalhes, mas servem para traçar uma maneira bastante livre em que ele trabalha. Só por curiosidade, durante os 6 anos de filmagem de Eraserhead, Jack Nance permaneceu o tempo todo com aquele excêntrico corte de cabelo de seu personagem.

Bom, depois de algumas divagações sobre o estilo de Lynch, posso então chegar a uma conclusão: Lynch é um realista, e não um surrealista. Talvez ele seja o maior realista de todos, uma vez que ele pretende desmascarar toda a sociedade e mostrar sua verdadeira faceta, e é nada menos que curioso que ele o faça usando-se de uma estética surreal. Mas Lynch não condena essa sociedade em si, e sim o que ela esconde. Nesse ponto ele se afasta mais ainda dos surrealistas (inclusive ele diz que sua grande influência cinematográfica foi Fellini, tendo visto apenas poucos filmes de Buñuel). Twin Peaks é realmente um lugar maravilhoso, e quem mais consegue aproveitá-la e o agente Cooper, exatamente o mais transparente de todos; ele também prova que é possível achar a felicidade verdadeira, desde que você pare de fugir, como é mostrado nos finais de Veludo Azul, Coração Selvagem e História Real. Essa talvez seja a grande mensagem da obra de Lynch (se é que há uma), vivemos num mundo sádico e hipócrita, mas há esperança apesar de tudo.

Como dito no começo deste artigo, durante sua carreira Lynch se dedicou a vários projetos diferentes; dirigiu vários episódios e curtas para a televisão; produziu um musical, que mais tarde foi editado e lançado como o filme Sinfonia Industrial No. 1; de 1983 a 1992 ele desenhou para o jornal L.A. Reader a tira de quadrinhos O Cão Mais Bravo do Mundo, sobre um cachorro com tanto ódio de tudo que mal podia se mover, comer ou latir, só rosnava; produziu videoclipes de bandas que gostava, como Rammstein e Roy Orbison; continuou sua carreira artística, tanto na pintura quanto na fotografia. E onde está Lynch agora? Há alguns anos ele estreou seu website, davidlynch.com, onde contém várias amostras dessas diferentes mídias onde ele trabalha, assim como a produção de novas séries. Em 2002 ele dirigiu, exclusivamente para o site, a mini-série de 8 capítulos chamada Rabbits, onde 3 pessoas vestidas de coelhos habitam uma mesma casa. A Câmera nunca se move, não há cortes, nunca sabemos direito o que está acontecendo, e os diálogos estão espalhados aleatoriamente no roteiro. É um dos projetos mais sombrios e ousados do diretor, voltando às raízes de seus curtas e de Eraserhead. Em 2003 ele lançou um curta-metragem 'escondido' no site, chamado Darkend Room, e vem prometendo uma nova série chamada Axxon-N, que parece ter sido posta de lado. Bem recentemente foi confirmado o novo filme dele, provavelmente para 2006, chamado INLAND EMPIRE (tudo em maiúsculo), que terá Laura Dern no elenco, e todo filmado em digital. Se for tão bom quanto seus outros trabalhos só saberemos na hora, mas desde já podemos esperar ao menos uma coisa, já de praxe do diretor: Lynch nos surpreenderá.

Filmografia

Título Prêmios Ano Notas
Nadja
Recepcionista do necrotério
1994
The Short Films of David Lynch
Ele mesmo - Narrador
2002
2009
2010
David quer Voar
Ele mesmo
2010
2012
Zelly & Eu
Willie
1988
Beatniks, Os
pintor
1980
1998
2002
Amputada
enfermeira
1974
2014
2016
Twin Peaks: The Missing Pieces
Chefe do FBI Gordon Cole
2014
6,5
Twin Peaks: O RetornoSérie
Chefe do FBI Gordon Cole
2017- ...
1992
7,1
7,4
Lucky
Howard
2017
Twin PeaksSérie
Chefe do FBI Gordon Cole
1990-1991
8,9
2017
Fabelmans, Os
John Ford
2022
7,6
Lynch/Oz
Ele mesmo (imagens de arquivo)
2022
Título Prêmios Ano Notas
1990-1991
8,9
2017- ...
Título Prêmios Ano Notas
2002
Grandmother, The
Roteirista
1970
Absurda
Roteirista
2007
Rabbits
Roteirista
2002
Alfabeto, O
Roteirista
1968
1966
DumbLand
Roteirista
2002
The 3 Rs
Roteirista
2011
Darkened Room
Roteirista
2002
Amputada
Roteirista
1974
Twin Peaks: The Missing Pieces
roteiro e série de tv
2014
6,5
1990
7,7
7,4
Oscar (indicação)
Globo de Ouro (indicação)
1980
8,1
8,5
Cidade dos Sonhos
Roteirista
Globo de Ouro (indicação)
Festival de Cannes (prêmio)
Oscar (indicação)
2001
8,5
8,5
Estrada Perdida
Roteirista
1997
7,8
8,2
1992
7,1
7,4
Eraserhead
Roteirista
1977
6,7
6,9
Duna
roteiro
1984
4,6
Império dos Sonhos
Roteirista
2006
6,0
6,8
Veludo Azul
Roteirista
Oscar (indicação) 1986
8,3
8,1
What Did Jack Do?
Roteirista
2017
Fire (PoZar)
Roteirista
2020
1988