''Quando um coração e uma mente transcendem o ato de fazer cinema.''
Há palavras para defini-lo por completo? quando um filme deixa de ser um filme e se torna algo maior que ele próprio? quem em sã consciência faria algo do tipo numa época em que seu país ainda lambia as feridas da 2ª guerra? porque um jovem anônimo cuspindo um discurso inflamado contra a câmera consegue ser mais forte que todo um exército? As respostas não são nada fáceis de encontrar, talvez nem as encontremos um dia, mas vamos lá. Chutando a bunda do convencionalismo imposto por Hollywood, ''Joguem Fora Seus Livros e Saiam às Ruas'' abandona desde o início qualquer tipo de narrativa em prol de imagens, sons, sensações e perturbações. O filme já começa ''todo errado'', e daí pra frente, não há como parar de vê-lo. Aquele mundo inconstante e sem nenhuma perspectiva para o futuro, ou com o próprio presente, já faz parte de você. Seja por um momento, seja por toda a vida. O protagonista é um jovem anônimo, sem rumo, sem amigos, e com uma família também extremamente problemática. A avó, uma ladra de lojas e uma mentirosa de um cinismo enorme. O pai, um cão abatido, um criminoso de guerra, que, perturbado, parece nem ser mais um ser humano comum, tanto pelo que fez na guerra, pelo que viu. E a irmã mais nova, uma puta, que odeia os homens e mantém uma relação doentia com seu coelho de estimação. O filme (?) vai muito além de contar uma ‘’simples’’ história, ele adentra a uma parte das lembranças dos japoneses que todos dariam tudo para esquecer: A guerra. A bomba. A derrota. Os mortos. As lágrimas que ainda insistiam em lavar os rostos daqueles que viveram ou que de alguma forma foram afetados por ela (eis o caso do nosso protagonista). Terayama não ousa citá-la (e nem precisava). Mas só os olhares, os sorrisos carregados de uma melancolia inesgotável, insistem em nos contar, quase que sem querer, que, sob um coração ainda em pedaços, esse filme foi realizado.
''Não tenho casa, não tenho pátria. Não há um mundo pra mim.''
O ódio do protagonista a sua mãe, é só uma das muitas metáforas poderosas colocadas por Terayama. Esse ódio incontrolável, pode muito bem ser por sua ‘’pátria mãe’’, o Japão. Ele a culpa, implicitamente, e até em seus sonhos, por seus diversos fracassos. Em sua vida social (praticamente inexistente), nas relações familiares, e na cama. Sim, na cama. Inclusive é nela em que Terayama filma uma das cenas mais estupendas de tal obra. O jovem, ao entrar no prostíbulo, totalmente inibido (ainda virgem), é recepcionado por uma das prostitutas, que a trata de forma quase angelical. Sem conseguir o que queria, o jovem se desfaz em vergonha e lágrimas (algo fica implícito aqui, hein?!), enquanto é consolado pela mulher e imagens e sons se fundem aos seus corpos se misturando a pinturas e telas, construindo quase que uma obra-prima que mescla imagens sons e sensações. Realmente, incrível, único. O jovem, totalmente deslocado, é perseguido por um trauma que não parece ter vivido. Ele parece estar sempre incomodado, incompleto, infeliz. Ele tentou lutar, mas descobriu ser um fracote (não é muito difícil deduzir a referência ..), ele tentou sair daquele lugar, mas mesmo em seus sonhos, o avião se desfez em chamas. Tão cedo ele não sairá dali. Talvez nunca saia. Ele pertence aquele lugar. Ele tem que sentir a dor de uma ferida que nunca cicatrizará. Uma ferida de uma guerra que ele sequer compreende. Tentar entender não é uma tarefa fácil pra quem cresceu com sua (pátria)mãe sem alma, com seu coração destruído. Como compreender tamanha dor? Como lidar com um luto que parece interminável?
''Os japoneses brigam por migalhas ..''
Diversas cenas entrariam facilmente no contexto dessa frase altamente simbólica, mas a da Avó correndo com algumas bugigangas roubadas de uma loja, e a dos garotos, ''compartilhando'' (abusando, pode-se dizer) de uma garota imunda, sem praticamente nenhuma qualidade, vazia de sentimentos ou qualquer outra coisa, também é uma perfeita síntese de tal frase. Garota essa que alimenta também um ódio interminável dentro de si: aos homens. Talvez por ter sido criada sem um pai presente, ou por ver seu irmão ser sempre ridicularizado por todos à sua volta, ou por ter sido abusada quando criança. Nada é totalmente explícito quanto ao seu passado (como ocorre com todos personagens), mas há (poucos) indícios quanto à ele. Há simbolismo maior sobre o ódio aos homens do que uma garota chamando as pessoas para socarem um saco de pancadas em forma de um pênis? Acredito eu, que não. Quando sua única fonte de ‘’distração’’ também é morta, (assim como os sonhos do nosso protagonista), acabando assim, totalmente com a pouca inocência que ainda lhe restava, a garota percebe enfim, que também não tem um coração, ''doando'' seu corpo agora sem pudor algum. Mas há também uma estranha singeleza no meio de tanta crueldade .. há cena mais bonita do que a do irmão, que parecia estar à beira de um colapso, consolando sua irmã após um ato execrável? Terayama também tinha compaixão para com seus conterrâneos. Não é só o ódio ou a tristeza que o dominava. No meio de tantos gritos e uma revolta incontrolável, havia uma pequena ponta de esperança. Mesmo que no final ela seja destruída, como tudo que há de vivo no filme, é bom saber que ela estava lá, de alguma forma. Mostra que seu lado mais ''humano'' ainda estava vivo, óbvio que sob a névoa de uma tristeza e de um sentimento de revolta gigantesco, mas ela estava lá.
''Um lagarto preso numa garrafa de coca-cola .. Você não tem forças para sair, você tem, Japão?''
Em todo o filme há uma mescla de sentimentos de ódio e uma estranha admiração aos EUA. ‘’Não fumo cigarros japoneses’’ – diz um personagem em uma certa cena. Já um jovem anônimo, fuma um cigarro de maconha enquanto queima uma bandeira de tal país. É possível ainda ver uma influência culinária e cinematográfica (o pôster de Chaplin no quarto do garoto, e a mostruosa homenagem final), uma coisa cultural mesmo, que até um Mickey Mouse pode simbolizar. Essa mistura de sentimentos mostra o quão atordoado ainda estava o Japão, que ainda não caminhava com as próprias pernas desde seu maior desastre. Talvez essa forma de implantar o ‘’sonho americano’’ em seu protagonista, e matá-lo aos poucos, seja a mais cruel das ironias. Talvez o diretor só quisesse dizer algo que de alguma forma não deixasse os americanos indiferentes, algo que os mostrasse que aquilo que ‘’eles’’ fizeram, deixou para sempre um buraco no coração de toda uma nação. Talvez isso aqui não seja um crítica de filme, mas talvez Terayama também nem quisesse fazer um filme de fato, e sim apenas expressar seus sentimentos mais profundos, engasgados, através da tela. E nela, dialogar diretamente com quem viu, ouviu, e sentiu tudo jogado sob ela, da forma mais original possível. E não que tivesse lá grande importância, mas o filme é esplêndido também esteticamente. Imagens, sons e sensações se fundem à todo instante. Seja na tela em branco, verde, ou lilás. Refletindo a incerteza quanto ao futuro de toda uma nação. Terayama não tinha pudores. Ele contesta e homenageia, ameaça construir uma narrativa comum e desconstrói tudo numa sequência em que o espectador é a a própria câmera. Questiona e peita tudo que um diretor comum não teria audácia de fazer. Ele só queria gritar algo, mas gritar fazendo cinema é a melhor forma para que seu grito seja ouvido.
''Eu gostaria de sair da minha jaula. Eu gostaria de gritar com você. Gritar uma mensagem para você .. O sol está se pondo .. o sol gagueja, a 5ª Sinfonia de Beethoven gagueja, as crianças no Vietnã gaguejam, as nuvens no céu gaguejam, o coração gagueja, os movimentos de resistência gaguejam, gaguejam e gritam ...''
O único erro de Terayama foi dizer que a tela ficaria em branco, e ele e seu filme seriam esquecidos. Não, Terayama, você não será esquecido, esse monumento nunca será esquecido. Os 28 dias de filmagens se passaram, a tela ficou em branco, mas as imagens não sairão nunca da mente de quem as viu.
''Se o fim do mundo for de manhã, eu plantarei uma macieira.''
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