01 – A cosmovisão.
A cosmovisão de um indivíduo jamais pode ser proscrita sob a alegação de que corresponda a uma “mentira”, mesmo que ela nos soe, sob um primeiro olhar, incompreensível, como nos parece ser o caso das assertivas pronunciadas pela personagem central do documentário ESTAMIRA (2006), produção cinematográfica em volta da qual nossas análises serão construídas. Tal alegação infeliz, se proferida, acabaria por resultar em um disparate, pois nenhuma cosmovisão, independentemente da pessoa à qual ela esteja associada e do lugar social que ela ocupa, pode ser reconhecida como um sistema absolutamente verdadeiro. Primeiramente, antes de maiores esclarecimentos, pois retomaremos as assertivas supracitadas posteriormente, convém determinar como a palavra cosmovisão é entendida nesse texto. Para nós, ela se constitui no conjunto de entendimentos, conhecimentos, categorias e percepções que se formulam a partir da interação do sujeito com o mundo empírico e a sociedade humana que o ocupa e o transforma. Na base dessa estrutura de entendimentos residem ao menos três elementos fundamentais. O primeiro se refere aos conhecimentos aos quais denominamos “tradicionais”, pois são estabelecidos a partir do que os homens que nos precederam historicamente julgaram que seria útil ou não à conservação do grupo ao qual pertencem. O seu ciclo de reprodução se efetua através das estruturas de nossa sociedade, como a família e a escola. Um exemplo: a sociedade em que vivemos acredita de modo devoto que o aborto deve ser uma prática punida com reclusão em uma instituição destinada para essa função, pois ele atenta diretamente contra o direito à vida e os princípios religiosos majoritário da nossa sociedade, sendo, portanto, prejudicial à manutenção das lógicas internas que mantém o seu funcionamento. O segundo se refere a entendimentos mais particulares que o sujeito adquire por conta de experiências específicas: ter uma relação mais próxima com uma determinada ferramenta ou instrumento, assumir para si valores próprios de uma profissão, saber operar um veículo. Em grande parte, para estes últimos, poderíamos afirmar que seriam entendimentos e conhecimentos que não se apresentam de forma disseminada na sociedade, mas apenas vinculados a determinados grupos específicos e suas práticas mais próximas. O terceiro se refere estritamente aos conhecimentos adquiridos através de meios científicos: os que aprendemos no ensino básico, nas escolas técnicas ou na universidade. Porém, é necessário ter-se em mente que a cosmovisão de um indivíduo é ambivalente, pois pode apresentar em alguns elementos de sua estrutura um aspecto estável e rígido e noutros uma dinâmica de sistema volátil, permeado por um constante processo de reorganização e de transformação que se efetua a partir dos novos fatores que são apresentados ao sujeito através da sua interação com o mundo empírico.
02 – O tradicional.
Um dos aspectos elencados acima merecerá atenção especial neste ensaio. Atribuiremos às formas tradicionais de pensar e agir reproduzidas amplamente em nossa sociedade (às quais denominaremos apenas como costumes a partir de agora) maior destaque, pois elas são demasiadamente elucidativas para a temática aqui abordada. Não obstante a utilidade, outro fato foi essencial para o seu destaque: a constatação de que o costume permeia várias esferas da vida humana.
03 – A genealogia do costume.
O homem é um animal social. Seja pela circunstância de que depende de semelhantes para o êxito da sua conservação, pois sua reprodução biológica é necessariamente um ato que demanda cooperação e relação entre dois indivíduos, ou pelo fato de que antes, durante a gestação do feto, período em que o vínculo é visceral, e após o nascimento ele permanecerá ligado a outros indivíduos tanto por laços apenas sociais (próximos não parentes) como por laços sangüíneos e biológicos (ascendentes). Entretanto, nos é claro que o exposto acima se refere ao funcionamento “normal” das lógicas de reprodução humanas e que exceções a essa regra podem existir, mas elas, por si só, não são suficientes para restringir o caráter social do homem. Além do exposto, outros elementos são cruciais para a associação entre pessoas: empresas que, por sua natureza, demandam necessariamente a coalizão de forças, como o enfrentamento de uma ameaça representada por um predador, ou as vicissitudes de um meio natural que só se pode cultivar e explorar através de um esforço conjunto. Contudo, a associação pode, por vezes, desencadear embates entre os membros dessa comunidade, pois, por mais que os objetivos comuns tenham sido fundamentais para a coesão do grupo, eles não assumem um caráter totalizante e perpétuo, de forma que elementos desagregadores fundamentados em interesses não conciliáveis podem surgir. Essa força desagregadora pode ter como efeito o estabelecimento de conflitos entre os representantes de interesses divergentes, e estes podem, por sua vez, comprometer a manutenção e conservação das partes envolvidas no embate ou da própria comunidade que se encontra enfraquecida. Logo, será nesse contexto que o costume começará a dar os seus primeiros passos. Ele deitará suas raízes paulatinamente no convívio social através da estipulação das práticas que são proibidas, permitidas e toleradas no seio da comunidade, tendo como referência o princípio da conservação do grupo através da manutenção da suas lógicas internas já estabelecidas e, por isso mesmo, já provadamente eficazes, assim como assume a função, e essa utilidade deve ser analisada de forma circunspecta, de impedir que elementos estranhos, imprevisíveis, inesperados e, por sua natureza desconhecida, ameaçadores possam se formar no seio da comunidade e venham a comprometer a sua viabilidade. Não obstante, o costume nos salta aos olhos como um dispositivo extremamente eficaz de garantia da conservação da comunidade através da perpétua vinculação que ele institui com as lógicas fixadas, permitindo, assim, que ela reproduza no presente os esquemas do passado, visando sempre dotar as práticas sociais de um caráter anistórico. Portanto, o costume, através da sua perpétua repetição, acabará por tornar-se um mecanismo estável e perene, de forma que sua eficácia e existência longa o dotarão de uma autoridade irracional que emana de tempos imemoriais, criando ao seu redor uma áurea de santidade e indiscutibilidade que reforça o obstáculo que ele coloca a qualquer medida que tenha como objetivo reforma-lhe, mesmo que em termos diminutos.
04 – Interação com a realidade.
Retomando as discussões levantadas no início desse ensaio (a afirmação categórica de que nenhuma cosmovisão é absoluta), tentarei agora dotá-las de fundamentação. Para isso, um ponto do nosso texto será fundamental: a conclusão de que a cosmovisão de um sujeito se formula a partir da interação que se estabelece entre ele e os fenômenos, objetos, que o cercam. Interagimos com a realidade tendo como instrumentos os sentidos (tato, olfato, visão, audição, paladar) de que somos naturalmente dotados por condições biológicas. Através deles, acessamos a “realidade objetiva” que se coloca diante de nós. Entretanto, não se pode deixar de notar que esses instrumentos sensoriais são limitados, pois existem sons que nossos ouvidos não captam, regiões do corpo onde a sensibilidade do tato é menor, como conseqüência da distribuição irregular das suas terminações nervosas, aspectos de corpos materiais que não conseguimos acessar com a nossa visão devido a uma excessiva distância e outros. Contudo, claro que condicionados por certos limites físicos, esses sentidos são eficazes instrumentos sensoriais, pois o ser humano consegue, por meio deles, interagir, compreender e transformar a realidade que o cerca. Essa constatação, isolada, poderia nos impelir a crer que é uma relação objetiva que se constrói entre homem e meio. Tal conclusão seria apressada e ingênua, pois após a captação de estímulos pelos nossos mecanismos sensoriais o cérebro os interpreta. Parece-nos que é essa interpretação racional dos sentidos que introduz a subjetividade na construção dos vários elementos que constituem a nossa consciência. Explico-me: em uma situação hipotética, um determinado sujeito ao caminhar por uma rua se depara com um corpo que jaz ao seu lado. O fenômeno é um: o corpo de um indivíduo do sexo masculino alvejado por um projétil na região torácica jaz em uma determinada localização espacial (rua, bairro, cidade e etc.). Contudo, ao interagir com esse fenômeno, apesar de os sentidos indicarem algo relativamente objetivo, será o cérebro que irá dar-lhe a sua formatação última: ele poderá assumir ou não uma conotação trágica (por ser a vítima uma pessoa com a qual o sujeito deitava profundos vínculos afetivos ou que há muito se queria ver morta), ou ser ou não apreendido como um fenômeno terrificante e traumático (pela singularidade e brutalidade do evento ou por ser algo que ocorre com relativa freqüência). Por isso, concluímos que a atribuição última de valor e significado dada a um fenômeno, assim como a sua assimilação, formatação e estruturação, são produtos dos mecanismos racionais individuais de nosso cérebro e nisso identificamos a subjetividade da percepção humana.
05 – Problemas epistemológicos.
As análises, embrionárias, simplistas e jamais exaustivas, acima formuladas e construídas, são importantes para podermos partir para uma tentativa de compreensão menos equivocada da personagem do documentário aqui analisado. Talvez consigamos, a partir delas, nos aproximar mais dos fenômenos multifacetados e extremamente complexos que nos são apresentados no documentário, pois tentaremos nos distanciar o máximo possível das primeiras impressões, impulsos e pensamentos que nos ocorrem a partir do primeiro olhar que o lançamos. Digo que nosso esforço se direciona a uma compreensão menos equivocada porque acredito não ser possível apreender esse evento em sua totalidade e de forma peremptória. Primeiramente, pela simples circunstância, jocosa e que denota no mínimo algum grau de prepotência da nossa racionalidade, de que tentamos atribuir um caráter racional e sistematizado (a posteriori, pois essa empresa é impossível de ser feia a priori, a não ser que se recorra a práticas divinatórias) a um evento que pode ter sido produto do mais caótico e complexo acaso (essa tentativa, que pode ser ou não satisfatória, de procurar no passado os processos que culminaram na problemática situação da mãe será efetuada durante o documentário por Carolina, filha da Estamira). Não obstante isso, nossa relação com a representação cinematográfica da “Estamira” se efetuará a partir de um viés, o nosso. Portanto, apenas nos é possível estabelecer uma relação intermediada e interpretativa com o fenômeno, de forma que, por vezes, poderemos incorrer em distorções, simplificações ou falsificações do que está sendo analisado (acreditamos que, caso venhamos a formular uma sentença que soe como uma crua simplificação, teremos como co-autor Hernani, filho da Estamira, que reduz toda a complexidade apresentada pela situação da mãe à influência de uma entidade espiritual maligna).
06 – Como entendemos a Estamira.
Como sabemos, o costume, as maneiras tradicionais de agir e pensar que nossa sociedade estabelece, exerce uma grande autoridade coercitiva sobre os indivíduos que a constituem. Caso contrário, como explicar que determinadas práticas, padrões de pensamento e de conduta, se reproduzam de uma forma tão “satisfatória” entre os novos indivíduos que irão compor nossa comunidade? Como compreender que um padrão de pensamento religioso se encontre em tal grau de disseminação em nossa sociedade, ou que a nossa sociedade esteja tão atrelada a padrões de pensamento e ação que poderíamos identificar como “burgueses”? Isso só se entende quando se tem em mente que, terminado o clico de produção biológica, tem-se início imediatamente o ciclo de reprodução social. No entanto, mesmo diante do caráter imperativo desse clico, percebemos que rupturas continuam a ocorrer, que novos, imprevistos e desconhecidos elementos ainda se formam diante de tamanha força e autoridade (durante o documentário essa coerção é explícita, pois se materializa na figura do filho da Estamira que a repele e repreende por ela não ser um prosélito de sua convicção religiosa). Essa ruptura, que torna possível a criação de entendimentos que em nada querem depender do tradicionalmente aceito, surge, para nós, como a “loucura”. Nietzsche assim discorre sobre a loucura: “se apesar disso (da coerção do costume), afirmo, sempre irromperam idéias, valorações, instintos novos e divergentes, isso ocorreu em horripilante companhia: em quase toda parte é a loucura que abre alas para a nova idéia, que quebra o encanto de um uso e uma superstição venerados. Compreendem por que tinha de ser a loucura? Algo que fosse, em voz e gestos, assustador e imprevisível como os demoníacos humores do tempo e dor mar e, portanto, digno de semelhantes temor e observação? Algo que ostentasse tão visivelmente o signo da completa e involuntariedade como os tremores e a baba de um epilético, que parecesse distinguir o louco como máscara e porta-voz de uma divindade? Algo que infundisse, no portador de uma nova idéia, não mais remorsos, mas reverencia e temor ante si mesmo, levando-o a tornar-se profeta e mártir dessa idéia?” (Aurora, aforismo 14). Portanto, é no sentido das proposições acima que entendemos o “fenômeno Estamira” e os eventos que transcorrem no documentário analisado, pois não poderíamos concluir em sentido oposto diante da profundidade e amplitude de entendimentos tais (transcreverei as sentenças tal como proferidas pela Estamira no documentário, sem efetuar possíveis correções): “Eu transbordei de raiva... eu transbordei de ficar invisível... com tanta hipocrisia... com tanta mentira... com tanta perversidade... com tanto trocadilho... eu... a Estamira... as doutrina errada trocada... ridicularizou os homem... ridicularizou mesmo é isso mesmo... ?... entendeu... fez o homem expor ao ridículo para eles... fez o homem pior do que um quadrupolos... então que deixasse os homens como fosse... antes... de ser revelado o único condicional...” (00h:29m:00s a 00h:30m:00s); “Onde já se viu uma coisa dessa... a pessoa não pode nem andar na rua em que mora... nem trabalhar dentro de casa... e nem em trabalho nenhum em lugar nenhum... ?... que Deus é esse?que Jesus é esse?... que só fala em guerra e não sei o que... não é ele que é o próprio trocadilho?... só para otário para esperto ao contrário bobado bestalhado... quem já teve medo de dizer a verdade largou de morrer?... largou?... Quem anda com deus dia e noite noite e dia na boca... ?... largou de morrer?Quem fez o que ele mandou o que o da quadrilha dele manda largou de morrer?... largou de passar fome?...largou de miséria?...” (00h:48m:20s a 00h:49m:09s) Para nós, interessa menos julgar se o que a Estamira profere corresponde ou não a uma pretensa “verdade”, o que seria uma pseudo conclusão independentemente do resultado a que chegássemos, mas sim a compreensão de que ela foi capaz de formular um sistema de entendimento autônomo que se constituiu em uma alternativa às percepções com as quais havia convivido durante a maior parte da trajetória de sua vida e que, em algum momento, por algum motivo, se tornaram insuficientes para organizar e explicar a realidade com a qual dialogava. Esse fato deve ser ressaltado, pois uma grande parte do conjunto de pessoas que formam nossa sociedade será incapaz de tal realização, mesmo que a experiência contrarie continuamente as suas convicções. Diante disso, a quem caberia realmente o adjetivo louco (na acepção que a palavra assume em nossa sociedade)?...
07 – Últimas palavras.
Convém lembrar que, assim como ocorre no plano do costume, a “loucura” possui duas dimensões: uma que se refere ao plano das idéias e outra ao plano da ação. Por isso, uma ressalva deve ser feita: não somos ingênuos apologistas da “loucura” em todas as suas manifestações, pois identificamos como problemáticas as situações em que ela, ao ser externada através de uma ação ou uma palavra, concorre para o prejuízo dos direitos de outros indivíduos ou causa danos e sofrimentos às pessoas que estão, por alguma razão, vinculadas à pessoa vitimada pelo transtorno (seja por um dano físico-moral causado por uma agressão direta, ou o desgosto que deve causar ter que ver um ente próximo ser proscrito pela sociedade e enclausurado). Por isso, em nosso entendimento, um astuto e delicado jogo deve se estabelecer entre a formulação de entendimentos revolucionários, sua utilização na convivência com outros seres humanos e a perspicácia de que é necessário manter-se submetido a determinados dispositivos sociais que garantam que nossa reclusão não seja desejada...
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