O mestre do suspense entrega em seu último trabalho um filme que se não faz jus ao seu legado, pelo menos se torna uma fita divertida e com personagens carismáticos, bom enredo e as tais cenas memoráveis que ao longo de sua jornada se tornaram marca registrada do autor. Não me recordo qual profissional que falou isso, mas foi alegado certa vez por um cineasta que quando mais velho ficava, pior seus projetos eram finalizados e de certa forma concordo com essa máxima. Hitchcock viu seus trabalhos apresentarem uma queda drástica de qualidade a partir da segunda metade dos anos 60. Com saúde já debilidade, Hitchcock finalizou o projeto de forma bem árdua. Curiosamente o diretor flerta generosamente com o humor negro, atitude que até então ele não havia feito com frequência durante sua filmografia e acaba por executar também uma narrativa leve, direta e objetiva.
Outro fato extremamente curioso é a adaptação feita por Hitchcock ao longa. Baseado em romance de 1972 do escritor Victor Canning, o livro relatava o sequestro do arcebispo de Canterbury lá na Inglaterra e continha foco quase que todo de narrativa na perseguição da policia a suspeitos que não tinham nada a ver com a história, que eram um casal bem desastrado e maluco; um taxista e uma médium vigarista. Só que Hitchcock alterou totalmente a trama, nem da pra falar direito que se trata de uma adaptação, visto que o sequestro do bispo no filme não ocupa nem um terço de projeção. A película na verdade cruza duas histórias entre si, a primeira focaliza um casal, formado por um joalheiro e sua esposa. Os dois acabaram de finalizar o sequestro de um milionário e mantêm um enorme diamante (o resgate) escondido em casa, esperando o momento certo para negociá-lo. Na outra, protagonizada pela médium e pelo motorista, mostra-os sendo contratados por uma viúva ingênua para encontrar um sobrinho desaparecido há 25 anos.
O mestre do suspense de cara já sinaliza que as duas histórias iram se entrelaçar, quando o táxi de George Lumley quase atropela Fran, a sequestradora. A partir daí, o diretor se dedica a cruzar os dois casos de maneira inventiva e muito, muito engraçada, em acontecimentos cheios de contratempos intrigantes. As sessões espiritas de Madame Blanche Tyler por exemplo são hilárias. Suas mudanças de voz, caras e bocas são engraçadíssimas e quando ela mal consegue conter a euforia pela oferta da Sra. Rainbird. Outro extremo sucesso do longa é a forte química apresentada entre Barbara Harris e Bruce Dern. Dern se destaca, entre outros momentos, quando Lumley finge ser um advogado, interrogando pessoas na busca de informações, sua pose, com o cachimbo no canto da boca, é engraçadíssima. A veterana Cathleen Nesbitt, Karen Black, William Devane e Ed Lauter também se saem bem, nada de mais, mas muito eficientes em seus respectivos papéis.
A trilha sonora do outro mestre John Williams, emprega um tom alegre na maior parte do tempo, o que soa coerente com o humor negro que recheia a trama. Destaque na parte técnica também a parceira de longa data do diretor, Edith Head, que apresentando roupas coloridas e espalhafatosas de Blanche, reforçando o clima leve do longa. Para alguns jovens de hoje, certas sequencias podem parecer datadas, mas que mesmo assim são muito bem conduzidas por Hitchcock, como a descida sem freios de Limley e Blanche quando o carro deles é sabotado. Se Hitchcock acerta na escolha do elenco, na direção do longa não seria diferente. Se no primeiro ato o enredo se mostra um pouco ensosso é na segunda parte que a narrativa ganha força, como exemplo quando somos envolvidos pela investigação de Lumley sobre o passado de Eddie Shoebridge, introduzido personagens interessantes na trama, como o mal encarado dono de um posto de gasolina, Joseph P. Maloney.
Quem também auxilia Hitchcock, assegurando um ótimo resultado final é seu montador/editor J. Terry William que consegue mensurar o ritmo da trama, sem deixar que o longa cai no marasmo em momento algum, prendendo a atenção do espectador durante toda as duas horas de duração. William intercala com louvor as duas linhas narrativas principais, com a investigação de Lumley e Blanche e a preocupação de Arthur e Fran com o aparecimento deles e o caçador e a casa acabam por inverter no final. Finalizando os destaques da parte técnica, vale contar também a ótima fotografia de Leonard J. South que evita cores sombrias o que obviamente é coerente com o clima leve proposto pela película. O que muita gente pode ter chiado da qualidade do filme, seria o humor empregado no terceiro ato, aí sim um deslize do cineasta que emprega o tom cômico com um pouco de excesso, devido a gravidada da situação em que Blanche se encontra. E Hitchcock também se mostra um pouco preguiçoso com um solução bastante rápida para concluir a fita.
Talvez o maior problema de "Trama Macabra" seja o alto nível das obras precedentes a ele. Se fosse um trabalho de inicio de carreira do diretor com certeza o filme teria maior destaque em sua filmografia. O casal de vilões por exemplo é outra parte negativa, pois apesar de serem frios e cometerem crimes meticulosos e várias atrocidades não metem medo em momento algum da projeção, mas existem inúmeros diretores por aí que já entregaram trocentas obras, mas nenhuma que não chegou nem aos pés desta. Não é um filme ruim, muito pelo contrário, é um excelente thriller de humor negro, com personagens cativantes, boa narração e ritmo ágil. Se os poderes de Madame Blanche realmente funcionassem, quem sabe ela poderia contatar o mestre e dizer que qualquer coisa, acho que somente agradece-lo seria mais do que suficiente...
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