Ah! O tal do boca a boca... Talvez a segunda alma do negócio, independente de qual setor, ele derruba ou ergue qualquer produto. Eu conheci "Irreversível" por um atendente de uma locadora aqui perto de casa, pela tal famosa cena, aquela mesma... Bem, os leigos da 7ª arte, ou quem não acompanha certos tipos de filme com uma temática variada o filme parecerá, à primeira vista, errôneo e sem sentido. Porém, cineastas aclamam a forma como Gaspar Noé conduz a linguagem dos planos e os enquadramentos, que fazem com que o espectador se sinta um voyeur de toda a história. Tanto que os trajetos da câmera foram pensados para simular o voo de uma mosca, que está presente em todas as micro cenas que levam ao clímax inicial. "Irreversível" é um filme para chocar e para poucos...
Alex (Monica Bellucci) é a atual namorada de Marcus (Vincent Cassel) e ex-namorada de Pierre (Albert Dupontel). Os três convivem numa boa, apesar de esporádicas demonstrações de ciúme – como numa conversa dentro do metrô – até que um crime brutal altera o destino de todos eles para sempre.
O próprio trabalho de direção e edição é perturbador. Só para começar, a história é contada ao contrário, como em "Amnésia". Cada cena é rodada totalmente sem cortes, até a câmera dar uma pirueta e nos jogar em uma nova cena, que na verdade é uma parte anterior da história. Falando da câmera, ela fica poucas vezes parada e quase não faz um movimento tradicional ou comum. Ela passeia nervosamente pelo cenário, entrando por janelas e portas, correndo junto dos personagens, caindo, girando, deixando as coisas de cabeça-para-baixo, fugindo do foco. Auxiliado pelo ótimo trabalho de som, que simula o barulho de uma sirene aumentando e diminuindo o volume, e pela fotografia avermelhada, o espectador tem uma crescente sensação de náuseas que faz a cena parecer um pesadelo. Contribui também o ambiente extremamente pesado e incomodo, com cenas explícitas e uma linguagem extremamente ofensiva. Esta inquietação reflete também o estado mental de Marcus, que está completamente atordoado, fora de si.
A trilha sonora, quando existe, serve apenas para oprimir o espectador. Quando eles estão na boate gay novamente, a trilha lembra o motor de carro ligando e apagando, ligando e apagando, ligando e apagando, sobreposta à música techno incessante do ambiente. Gradualmente o filme vai retirando aquele clima tenso e o trabalho em conjunto de direção, montagem e direção de fotografia é diretamente responsável por isto. O grande trunfo de Nóe é obviamente a montagem, pois um trabalho fraco e ou incoerente poderia por tudo a perder. Nóe acerta ao separar a narrativa em grandes blocos, o que evita confundir demais o espectador, já preocupado em remontar a história em sua cabeça. Completando o excelente trabalho técnico, podemos destacar o extraordinário resultado alcançado pelo também fantástico trabalho de efeitos visuais.
Noé tomou algumas liberdades pouco comuns, como iniciar as filmagens com um roteiro de apenas três páginas, estimulando ao máximo os improvisos dos atores do filme (em determinada cena, ao ser apresentado a uma pessoa, o protagonista responde que seu nome é Vincent, nome real do ator). O linguajar coloquial e a fluidez dos diálogos estimulam a platéia a encarar o filme como uma experiência informal, bem próxima da vida real. Além disso, o diretor preferiu filmar no formato 16mm (as câmeras profissionais utilizam uma bitola mais larga, de 35mm), para poder usar um equipamento mais leve. Com isso, Noé passou a ter liberdade para filmar em locações reais, com a câmera na mão, e fotografar todo o filme em tomadas longas e tudo parece conspirar a favor do diretor pois mergulha o filme em um ambiente extremamente realista: as ruas e o submundo gay de Paris.
"Irreversível" promove um fascinante estudo sobre o comportamento humano. Quando assistimos a uma conversa entre Marcus, Pierre e Alex (Monica Bellucci), que discutem o orgasmo, o assunto abordado é totalmente irrelevante, já que Gaspar Noé quer, na realidade, que compreendamos a dinâmica entre estas três pessoas, que as observemos em um ambiente de normalidade e a partir daí, percebamos como um homem carinhoso e gentil pode se converter em um assassino em questão de minutos. Costuma-se dizer que as pessoas mudam, mas na verdade quem nos muda são situações extremas em que somos jogados e talvez a amargura e decepção que acarretamos nos transforma para pior.
Mas a história e o excelente roteiro não poderiam ser transpassado para tela com excelência se não houvesse impecáveis interpretações do elenco. Vincent Cassel explora muito bem a enorme transformação de Marcus. Típico machão, ele bebe muito e paquera todas as mulheres em uma festa, mas por outro lado, quando está normal, é um cara atencioso, carinhoso e engraçado. Ele não pensa duas vezes na hora de trair Alex no banheiro desta mesma festa, e ao mesmo tempo, vai até o fim do mundo em busca de vingança quando sua mulher é violentada. Quando Marcus vê Alex ensanguentada (em um incrível trabalho de efeitos visuais), por exemplo, o som do coração e o zoom da câmera refletem a angústia dele e a realista reação de Cassel é extremamente bem captada pelo close de Noé. Observe como ele estava bebendo água e sorrindo e, ao ver Alex, sua mudança no rosto causa um enorme impacto, complementada pelo seu comovente e angustiante choro, jogado em cima dela. Monica Bellucci oferece uma interpretação segura como Alex, e é o grande destaque do longa. Observe a sutileza com que ela diz para uma amiga na festa que está vivendo um momento especial em sua vida. Posteriormente saberemos que ela está grávida, mas a dica já foi dada aqui. Quando faz o teste de gravidez, ela sai do banheiro lentamente, senta, coloca a mão na boca e, levantando os olhos, dá um sorriso. Bellucci é uma das mulheres mais sexy's e deliciosas do mundo e aqui prova ser uma excelente atriz, desperdiçada várias vezes em papeis que somente exploram sua beleza, aqui prova seu extremo talento.
Eu nem mencionei as tão famosas e polêmicas "cena do estrupo" e nem a "cena do extintor", pois somente que as vê pela primeira vez sente o impacto que elas proporcionam e detalhá-las aqui não surtiria o mesmo efeito. Na minha modesta opinião, todas duas chocam da mesma forma e irão permear pela mente de quem assisti-las por várias semanas. Talvez, "Irreversível" não seja aquele filme que você irá querer dar uma revisada, mas Noe prova que é possível fazer um filme desagradável de se absorver porém totalmente competente. Com uma direção impecável, interpretações de qualidade inquestionável e cenas realistas, o filme nos obriga a refletir sobre as escolhas que fazemos no decorrer da vida. É inevitável o sentimento de desconforto quando o filme termina, mas com o passar do tempo percebemos que é inegável também a grande qualidade da obra...
"Talvez, "Irreversível" não seja aquele filme que você irá querer dar uma revisada, mas Noe prova que é possível fazer um filme desagradável de se absorver porém totalmente competente."
Na verdade, eu já queria rever o filme e esse texto me deixou com mais vontade ainda. Muito bem escrito, Lucas!
Mas você e outros usuários só leem e comentam textos recentes aqui. Tem um bando de crítica mais antiga que fica esquecida...
O Patrick, primeiramente obrigado pelo elogio e em segundo lugar obrigado também pelo "puxão de orelha" pois infelizmente tenho esse defeito mesmo de comentar somente críticas recentes, vou mudar isso já! 😁
O filme é muito bom e a critica melhor ainda!
Valeu Alejandro!