Inúmeras vezes na vida, apostamos todas as fichas em determinado projeto e sonho que possuímos. Acreditamos cegamente que aquele plano não possui possibilidades de dar errado, porem algumas vezes essa concepção falha. E muito. Foi o que aconteceu com o mestre e gênio dos cinemas, John Carpenter. O ano era 1982, e Carpenter tinha a grande chance de sua vida, a oportunidade de entrar por seleto grupo de diretos com carta branca em Hollywood, que possuem portas abertas para ter qualquer filme bancado pelos grandes estúdios, como Steven Spielberg, por exemplo. A fita escolhida para tão façanha, era uma releitura de um filme B dos anos 50 nem tão bom assim, dirigido por outro mestre, "Howard Hawks". O filme em questão era "The Thing from Another World" que nas mãos de Carpenter virou apenas "The Thing". Já no Brasil, o original era "O Monstro do Ártico" e o remake se tornou "O Enigma de Outro Mundo".
Carpenter até então, só havia tido a sua disposição orçamentos limitados e financeiro bastante apertado, ele já havia contornado essas restrições vários vezes de formas extremamente gratificante e excelente, entregando obras ótimas e outro filme magistral no gênero do terror, "Halloween". O enredo de "O Enigma de Outro Mundo" pra quem não tá familiarizado se passa na antártica em uma base de pesquisas, afastada de tudo e no inverno rigoroso, onde o grupo é surpreendido por um cara em um helicóptero atirando e tentando a todo custo matar um cachorro que corre pela neve. O homem descontrolado até chega a atirar nos pesquisadores e acaba sendo morto por um deles. O cão sai intacto e é levado ao canil onde se junta aos outros cães. O quê os americanos não sabem é o motivo dos noruegueses tentarem matar "o cão" que na real é um alienígena que pode imitar qualquer tipo de ser vivo, absolvendo o DNA. O clima de paranoia cai sobre o grupo, pois ninguém sabe quem é o alienígena, nem quem continua humano, gerando conflito entre eles.
Infelizmente, aquela chance de ouro que Carpenter tinha nas mãos se perdeu. O filme foi um fracasso de crítica e público e o diretor permanece no limbo até hoje pelos grandes estúdios de Hollywood. Mas qual foi o problema, o que deu de tão errado assim? Bem, temos então um filme mezo sci-fi, mezo terror, mezo suspense, com um alienígena em campo, tocando o terror na galera. Qual foi o maior problema de Carpenter? Outro alienígena, só que um bem fofinho, que queria voltar pra casa e acabou conquistando o coração de todos no mundo e faturando algo em torno de US$ 793.000.00,00 ao redor do planeta. "E.T. - O Extraterrestre" de Steven Spielberg roubou a cena no ano de 1982 e aí ninguém queria ver um alienígena gosmento, sanguinário e assassino por aí. "O Enigma de Outro Mundo" acabou amargando grande prejuízo e se tornando cult e adorado e compreendido pelo público somente vários anos depois, mas o desastre já havia sido feito, e Carpenter acabou criando ódio mortal de Hollywood. Acabava uma parceria, um casamento que mal havia começado.
Carpenter aqui faz o que sabe de melhor, cria e trabalha um clima de paranoia e claustrofobia ao extremo, fazendo com que façamos parte daquela equipe. Nós espectadores, assim como o grupo, não sabemos e ao menos temos ideia de quem seja humano e quem é o alienígena. O roteiro escrito por John W. Campbell Jr. e Bill Lancaster se mostra fabuloso ao não ser preguiçoso e não criar situações fáceis de serem resolvidas, como por exemplo o conjunto dos personagens podia muito bem vazar da estação e procurar local seguro não é mesmo? Mas aí o organismo chave do extraterrestre poderia se copiar nessa área populosa e acabar por multiplicar-se e dominar toda a humanidade. Carpenter não conta com nenhum rosto conhecido para seu longa, somente o sempre carismático Kurt Russel, que havia trabalhado um ano antes com o diretor no também ótimo "Fuga de Nova York". Russel aqui está muito a vontade no pele de R. J. MacReady. Não que o ator seja referencia no ramo de atuação, mas passa credibilidade ao mostrar o pavor e medo de seu personagem com veracidade.
O filme não perde tempo com o desenvolvimento de seus personagens, seu ritmo é ágil e frenético, fazendo seus 110 minutos passarem voando. Carpenter tem as moral de criar cenas memoráveis e grotescas. O diretor capricha como sempre criando sequencias bizarras, dignas de Regan em "O Exorcista", tornando "The Thing" uma experiência explicita e chocante, executando vários trechos que iram permear a mente do espectador para sempre especialmente a do peito de um sujeito que se transforma numa enorme boca, enquanto a sua cabeça se desgarra do corpo e sai correndo com pernas de inseto! Genial meu caro! Outro grande acerto do diretor é a escolha de outro mestre para compor sua trilha sonora, Ennio Morricone. Morricone usa quase que em todas as tomadas sintetizadores e cordas de orquestra, contribuindo ainda mais para a frieza e desolação dos protagonistas dessa jornada.
A fotografia azulada de Dean Cundey é soberba, refletindo o clima de tensão constante dos personagens e a sensação de isolamento é exibida com louvor, pois, qual lugar seria mais ermo e solitário que o ártico? Em 2001 foi lançado um prequel-remake, totalmente dispensável e oco e eu ainda acredito que não se utiliza CGI para assustar as pessoas. Vários podem alegar que os efeitos soem datados e artificiais, mas eu discordo. A cada revisão, a fita arranca ares de admiração e é leitura obrigatória para fãs do gênero, do diretor e do cinema. O desfecho deixa um grande final em aberto, onde o clima de paranoia continua mesmo depois que o filme acaba. São coisas que somente Carpenter pode proporcionar, talvez o rompimento de seu casamento com Hollywood não tenha sido uma 'coisa' tão ruim assim...
Só pra se ter uma idéia: este filme é o responsável por eu ser um cinéfilo hoje!!! Valeu Lucas, por escrever tão bem sobre este filme tão especial pra mim!!!