Um policial infiltrado numa quadrilha de traficantes e um mafioso disfarçado que trabalha como inspetor de polícia recebem tarefas semelhantes: descobrir quem é o traidor que está passando informações ao grupo rival. Um precisa descobrir a identidade do outro. A idéia, de simetria perfeita, é simples e promissora. Surpreende que ninguém tenha pensado nela antes dos roteiristas chineses Felix Chong e Siu Fai Mak. Os dois escreveram um dos policiais mais sólidos dos últimos anos: “Conflitos Internos” (Wu Jian Dao/Infernal Affairs, Hong Kong, 2002), um thriller perfeito e uma poderosa reflexão sobre o que significa viver uma vida moralmente oposta daquela que se deseja, por razões que estão acima da vontade pessoal.
“Conflitos Internos” está ancorado em dois ótimos personagens. O inspetor Lau (Andy Lau) trabalha na polícia de Hong Kong há mais de 10 anos. Disciplinado, dono de um raciocínio rápido e extremamente dedicado, ele conquistou a confiança irrestrita do superintendente Wong (Anthony Wong). O rapaz, no entanto, é um mafioso infiltrado no grupo. Ainda jovem, ele foi obrigado pelo líder de uma quadrilha, Sam (Eric Tsang), a se alistar na força policial e a escalar a hierarquia policial, tarefa de que se incumbiu com competência. Agora, adaptado a uma rotina que odeia, ele verá seus serviços se tornarem finalmente essenciais.
O outro personagem é Chan (Tony Leung). Observador atento aos mínimos detalhes, homem de instinto aguçado, Chan teve essas qualidades percebidas pelo superintendente Wong quando ainda prestava exames para ingressar na academia de Polícia de Hong Kong. Assim, recebeu uma missão importante: tornar-se um agente secreto e se infiltrar na máfia local. Chan é um policial, mas nenhum outro homem além de Wong conhece a sua identidade. Em 10 anos, usando suas habilidades, também ele soube escalar a hierarquia do crime, virando braço direito do mesmo barão da cocaína que emprega Lau.
De olho no mercado internacional, os diretores Alan Mak e Andrew Lau fizeram um filme com o ritmo ágil de Hollywood, utilizando trilha sonora que sugere os clássicos thrillers de espionagem dos anos 1970 e uma edição moderna, rápida e incisiva. Além disso, os nomes curtos dos personagens facilitam o trabalho do espectador ocidental, que freqüentemente sente dificuldade de distinguir os personagens porque acha nomes e rostos parecidos demais. Esse problema não existe aqui. “Conflitos Internos” permite que a platéia se concentre 100% na trama, que é complicada e exige o máximo de atenção aos detalhes.
Para começar, surpreende a simetria perfeita que os dois diretores conseguiram imprimir ao filme. Os dois personagens são apresentados em paralelo, e avançam nas respectivas investigações com igual rapidez. Eles compartilham até um breve encontro fortuito, dentro de uma loja de artigos eletrônicos. Mas acontece que eles não se conhecem. No entanto, durante uma longa cena em que os traficantes conseguem evitar por pouco que a polícia os flagre com as mãos em uma grande carga de cocaína, tanto o superintendente Wong quanto o mafioso Sam descobrem que empregam, cada um, um traidor dentro de seus grupos.
A seqüência é alucinante e foi montada de modo sensacional, valorizando ao máximo cada segundo de tensão. Utilizando métodos eletrônicos de última geração, Lau e Chan se comunicam em tempo real com os respectivos chefes, dando dicas sobre mudanças de última hora nos planos. Cada chefe, por sua vez, vai alterando o plano original até perceber que o outro lado está antecipando suas ações. Os dois sabem que isso significa traição dentro do círculo mais íntimo, e um tenso confronto dentro da delegacia local deixa explícito que eles farão de tudo para descobrir a identidade dos traidores. Ironicamente, Chan e Lau recebem as tarefas. Principais funcionários de cada um dos lados, eles terão que descobrir a identidade um do outro e, ao mesmo tempo, tentar impedir que o adversário descubra sua condição de elemento infiltrado no grupo oposto. Deu para entender?
“Conflitos Internos” não é um estudo de personagens, mas seus dois protagonistas funcionam como dois seres de carne e osso, complexos e multifacetados como se existissem de verdade. Como é de hábito em filmes orientais, contudo, os diálogos precisos não revelam tudo; é preciso esforço e reflexão para compreender a sutileza com que os diretores constroem as personalidades de Lau e Chan. É precisamente nesse contexto – a vida de cada protagonista, e não o enredo policial – que se encaixam as citações de Buda sobre o Inferno Eterno, que abrem e encerram o longa-metragem e explicam o nome em inglês da película.
Chan e Lau são homens vivendo vidas que não escolheram, agindo de acordo com códigos morais que não correspondem aos que gostariam de estar seguindo. A rigor, eles deveriam ser apenas atores interpretando. Depois de 10 anos vivendo vidas mentirosas, contudo, ambos já deixaram de representar personagens. Já se tornaram aquilo que precisavam ser, por obrigação profissional. Já incorporaram traços morais que odeiam. Chan representa melhor esse doloroso dilema. Ele freqüenta uma psiquiatra (a quem revela, como se fosse uma brincadeira em um inocente flerte, sua verdadeira profissão) e se comporta de forma agressiva. Está desesperado. Não aguenta mais ser um bandido.
Sobre a parte técnica do filme a direção da película é composta por dois nomes; Wai Keung Lau, Alan Mak sendo que Alan Mak ainda assina o excepcional roteiro. A fotograia também é outro item que se destaque com toque de cores vibrantes e cartunescas, show de bola! E por último a montagem que em nenhum momento deixa o filme massante ou cansativo.
Abro um parenteses para comentar sobre o remake hollywodiano "Os Infiltrados" que finalmente rendeu o Oscar de melhor diretor para Scorsese. Achei o filme excelente também ainda mais que possui vários astros, mas fico um pouco frustrado pois o filme americano acaba por deixar Conflitos internos meio de escanteio o que acaba por várias pessoas não o assistirem e não o conhecerem por causa da outra fita...
Quem assistir a “Conflitos Internos” como um simples filme de máfia vai conferir um dos melhores trabalhos dos últimos anos sobre o tema. Tenso, bem dirigido e cheio de surpresas, o trabalho ainda conta com um mais realistas, amargos e inteligentes finais dos últimos anos. Aqueles que desejarem ir ainda mais longe e prestarem atenção aos detalhes, às diversas sutilezas que povoam esse excelente trabalho, no entanto, serão premiados com algumas idéias poderosas, a verdadeira cereja que coroa um bolo refinado e delicioso.
Tome como exemplo a pouco observada cena em que Chan, caminhando pela rua, encontra por acaso uma ex-namorada e sua filha pequena. Aparentemente, esta é uma seqüência curta, que nada acrescenta à trama. E é verdade: a cena não tem a menor importância para a ação principal. Quem prestar a devida atenção ao diálogo hesitante que eles travam, e deduzir corretamente as implicações sobre o que é dito (e, mais importante, sobre o que é apenas sugerido), vai compreender muito melhor a verdadeira natureza do desespero de Chan. Vai, enfim, compreender o sentido completo da expressão budista Inferno Eterno, que dá nome ao filme.
Sobre Conflitos Internos, vale dizer ainda que nos extras do DVD encontra-se um “final alternativo”, muito pior que o original, sem criatividade, que foi uma imposição das autoridades chinesas, preocupadas com as “implicações políticas” que o desfecho poderia trazer quando o filme fosse exibido em seu país. E a ilustração da capa mostra, em destaque, uma gostosona de minissaia, segurando uma pistola, cena que simplesmente não existe no filme, onde as mulheres têm participação insignificante é mais para ficar chamativo para os taradões de plantão.
Enfim, me apaixonei a primeira vista por "Conflitos Internos"... Não assisti a continuação tá faltando um tempinho, mas o primeiro recomendo de olhos fechados!
Belíssimo texto, gosto tanto desse quanto de Os Infiltrados.
Ainda não vi o filme, então prefiro esperar pra ler o texto depois. Estou há tempos interessado nesse.
😁
Obrigado Francisco... Meu primeiro comentário, hehe...