Larry Clark tem uma carreira conhecida por filmes controversos que costumam contemplar os excessos de uma geração fadada ao fracasso e composta por um bando de junkies babacas, sendo assim em sua estreia como diretor somos apresentados a esses elementos com uma naturalidade jamais vista antes em um filme “Coming of Age”, se é que podemos o encaixar nessa categoria. Já era claro o interesse de Clark por retratar a juventude, já que como fotografo, antes de iniciar a carreira audiovisual, sempre colocou em quadro adolescentes numa atmosfera inconsequente, sendo assim Kids (1994) entra para a história do cinema como um estudo de personagem e essa personagem é a juventude, nos 91 minutos de filme acompanhamos o dia de um núcleo de jovens (que pasmem, realmente parecem jovens e não atores adultos vestindo uniforme colegial) e nesse núcleo, com tramas paralelas não se tem um plot, com um estilo que se torna quase documentário, Clark nos faz testemunha de ações nocivas, que com certeza passa longe de nos causar alguma identificação, mas que não parte pra um julgamento em cena. Atos absurdos como o espancamento de um gay na praça dos skatistas são apenas retratados, deixando o julgamento para o público. Esses elementos acabam por deixar tudo mais orgânico e real, mesmo que no fim das contas, sabemos que esse aglomerado de ações exageradas não possa acontecer com tanta frequência no dia-a-dia de um adolescente.
De sua estreia no cinema até o lançamento de seu mais recente O Cheiro da Gente (The Smell of Us, 2015) são vinte e um anos e nesse tempo descobrimos que na filmografia de Clark sempre haverá esse elemento construído primeiramente em Kids, claro que por vezes pode não funcionar, como em Wassup Rockers (2005) ou podem ser apresentados com mais suavidade como aconteceu em Marfa Girl (2012), mas sabemos que com a soma dos elementos visuais, do roteiro orgânico que muitas vezes parece recorrer ao improviso como forma a transparecer naturalidade, sua paixão por skates, adolescentes, drogas e sexo, que aquilo ali é um legítimo material de Larry Clark.
Então ele apresenta The Smell of Us, que pra surpresa de ninguém tem na cena de abertura um jovem em cima de um skate, assim os admiradores de Clark veem a cena e prontamente se sentem em casa, já os conhecedores do diretor que não apreciam suas obras provavelmente se sentem frustrados e esperando já saber do que se trata o longa, mas o mais importante, os que não conhecem o trabalho dele são preparados pro que estar por vir ali mesmo, na primeira cena, com uma dinâmica de câmera diferente e um simbolismo triste, todos os elementos gritam a quem assiste que esqueçam a experiência de assistir a um filme convencional e com a imagem de um velho morador de rua se arrastando no chão, os prepara para uma jornada de excessos incômodos. Essa é a melhor surpresa do longa, vemos o jovem skatista na cena inicial, mas o nosso foco fica na imagem de sofrimento do idoso e aí todo o público se surpreende, fã ou não, admirador ou não, Clark se propôs a estabelecer um conceito que vai além de um retrato cotidiano, mas que causa uma reflexão mais profunda sobre a relação juventude/velhice. Conhecemos o grupo de adolescentes a ser perseguido pelo diretor na cena que segue a abertura, ali estão alguns dos jovens que vão marcar a história que além de simbolicamente se propor a discutir esse contraponto da juventude, também encara o assunto da prostituição masculina, que é abordada com menos frequência na indústria cinematográfica.
Os jovens Math (Lukas Ionesco) e JP (Hugo Behar-Thinières) rendem-se a prostituição aparentemente pelo motivo superficial de comprar skates e roupas de marca, é incrível como Larry Clark preparando o público para sair da zona de conforto, consegue mesmo assim tornar fácil se perder na linha sutil criada por ele, onde se você não avaliar com calma, uma cena de sexo pode parecer apenas um recurso para causar choque, quando na verdade ela está entregando algo mais valioso para narrativa, como quando a câmera passeia pelo corpo de Math e termina num primeiro plano do olhar perdido do garoto durante o sexo, por mais que nesse sentido faltou um pouco de sutileza ao diretor, pois não era preciso ser tão enfático ao mostrar repetidamente essa mesma ação em cenas diferentes, temos ali a profundidade necessária para entender o porque de vermos cenas tão explícitas e chocantes com os garotos. Então vemos histórias que se desencadeiam a partir do que vivem esses dois jovens, a relação de JP com sua mãe e a preocupação com o dinheiro que o filho vem ganhando, o amor platônico dele por Math, a posição que Math se colocou ao se entregar a prostituição e mesmo assim chorar no colo do amigo após um de seus programas, o Badboy da escola os julgando e alguns dos mais novos também se entregando ao ramo para ganhar dinheiro fácil.
No segundo ato já se pode notar que o grande personagem mais uma vez não é uma pessoa física, mas sim a atmosfera criada, a comunicação estabelecida entre idoso e adolescente, é por isso que Clark é genial a passear com a câmera pela pele jovem de seus personagens mais novos e em contraponto sempre dar espaço para a textura da pele dos idosos e toda sua flacidez. É surpreendente como aqui é fácil encontrar sentido em pequenos detalhes mesmo dentro dessa vasta coleção de cenas consideradas chocantes, a pele, o toque dos dedos na perna, corpos em decadência, olhares perdidos, a barba em contato com a nuca, a reação após um beijo de JP que Math recusou, os detalhes acabam gritando mais que qualquer cena de sexo explícito, mais que a nudez.
No fim das contas os diálogos entre o jovem e o velho e suas relações sexuais falam diretamente sobre o futuro de uma geração que tem sede de tudo e que faz qualquer coisa por dinheiro, para que no futuro possam se tornar adultos e idosos que paguem para ter qualquer coisa que quiserem, o preço é caro, é intenso e desesperador, os olhos de Lukas Ionesco dizem isso, o personagem de Hugo Behar-Thinières mostra isso na cena final e a cena inicial passa a ser emblemática, pois numa inteligente metáfora o próprio Larry Clark encara o personagem de um morador de rua que se arrasta por uma praça com uma expressão dolorosa no rosto, quando então os jovens passam a usar o senhor como obstáculo passando por cima dele para realizar manobras com seus skates, quer simbolismo mais triste que esse?
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