Fim da primeira década do segundo milênio, era da informação, da globalização, da evolução tecnológica. As indústrias em geral encorporam cada vez mais estes fatores em suas produções e o que antes fora visto como utopia ou avançado demais, hoje já faz parte do cotidiano do indivíduo, do mercado, da econômia e da arte. É neste turbilhão de eventos que nos fazem crer – errôneamente ou não – que estamos em processo de evolução que Avatar, a mais nova produção do badalado diretor James Cameron vai se apoiar. Um dinheiro incalculável à muitos é gasto na superprodução de um filme que parece ter sido criado para revolucionar a indústria cinematográfica e devorar os prêmios que disputasse ao decorrer do globo. Público e crítica deveriam aclamar a nova obra e, assim, ela ganharia o status que todos esperavam.
Não foi bem assim. No começo de 2009 estreia uma produção independente dirigida por Kathryn Ann Bigelow, ex-mulher de Cameron, dona de uma filmografia modesta e relativamente fraca: The Hurt Locker. O filme, ambientado mais uma vez no Iraque, chegou às telas com pouco sustento: trazia uma diretora pouco renomada, um elenco com poucos astros (Ralph Fiennes e Guy Pearce, os mais famosos, aparecem pouquíssimo) e um tema já desgastado e cansativo. Tal fato comprova-se na decisão brasileira, por exemplo, que não quis o filme nas telonas e lançou-o diretamente no mercado de home video. Quando o filme foi exibido e assistido por especialistas do mundo todo, a reação foi totalmente alheia às expectativas: depararam-se com uma obra de arte deveras particular, que trouxe algo novo ao debate sobre o terrorismo, com um vigor e uma direção forte como há tempos não se via. Em jornais e sites especializados então surgiam textos elogiando infinitamente a obra de Kathryn, o filme foi ganhando prêmios por onde ia passando, e assim foi chamando o público a presenciar tal experiência surpreendente que este filme, antes visto como insosso e indiferente, estaria trazendo.
Avatar então volta à cena. Milhões de pessoas vão assistir a estréia do filme mais badalado do ano. O bom marketing “boca à boca” ajuda o filme a contar com mais e mais telespectadores. Era questão de espera, Avatar bateria o recorde de bilheteria em pouco tempo. Assim foi, o filme foi ganhando o público por incontáveis motivos: os efeitos especiais, a mensagem sensacionalista de auxílio ao meio ambiente, a sensação diferente que a terceira dimensão trouxera, etc. A crítica, sabendo do roteiro fraco e das situações inverossímeis, em geral aceitou bem o filme e a história parecia estar sendo escrita como previsto.
São então anunciados os concorrentes ao Globo de Ouro. O “duelo” estava, enfim, marcado. Guerra ao Terror e Avatar lideram indicações e todos esperam pra ver quem se saíria melhor neste prêmio já apelidado como Preview of Oscar. Avatar foi soberano, ganhou o que desejava e todos os olhos continuaram no filme de Cameron, que já tornara-se atração obrigatória instantânea, aqueles que não viram o filme deveriam ir logo assistir o filme que revolucionaria a história do cinema! Lembro-me que meu ex-chefe, dono de uma vídeo locadora bairrista que – acreditem! – não vê mais filmes, foi ao cinema no alto da madrugada para poder apreciar a obra.
Veio o Oscar, o anúncio de suas indicações e a história se repetiu: Avatar e The Hurt Locker travariam outra batalha. Lembro de comentar com um amigo: “Apesar de pertencerem a mesma indústria, serem exibidos nas mesmas salas e de serem parte da mesma arte, Avatar e Guerra ao Terror são filmes distintíssimos e, quase, antagônicos. Este Oscar que traz como principal disputa ver quem irá levar mais estatuetas pra casa, determinará que rumo esta indústria tomará, a dos efeitos que, por muitas vezes, enfeitam um roteiro raso e cheio de buracos e alegram um público já esquecido da verdadeira função da arte, ou um rumo que valoriza a história bem contada, complexa ou não, mas sincera, que evidencie aqueles problemas intrínsecos à humanidade, ou simplismente traga um enredo que nos faça fugir destes problemas.
Não sou contra o cinema que visa o entretenimento, e só. Acredito que o entretenimento e a distração sejam elementos fundamentais a uma obra cinematográfica, mas daí a premiar como o melhor filme do ano um filme que se preocupe somente com isso existe uma barreira que não pode ser rompida. Como esperava e, admito, torcia, Guerra ao Terror deixou Avatar debaixo do tapete. Em cada estatueta recebida por Kathryn, Cameron parecia não saber aonde enfiar sua face sem graça como pode parecer seus filmes. Não querendo criar aquele clima superficial maniqueísta, não digo que o bem venceu o mal, ou que o bom cinema venceu o mau cinema, mas gosto de poder afirmar que a academia, que por tantas vezes errou, tomou a decisão correta em premiar um filme que à primeira vista pode não oferecer lá muita coisa, mas, ao o analisarmos e o estudarmos, percebemos a essência de um ótimo trabalho e de um bom filme.
Guerra ao Terror, ao contar o cotidiano de soldados americanos que lutam contra o terrorismo no Iraque, não se baseia na falsa política anti-guerra do Tio Sam, do contrário, ao narrar tais histórias, o filme nos presenteia, como um simples filme de ação, com muita tensão e questionamentos sobre esta política. Ouso ir além, a obra reduz toda esta guerra ao sentimento humano, pois conta nada mais do que a tensão vivida por soldados, alheios aos motivos de estarem em campo de guerra, neste cotidiano conturbado.
A sequência de planos é impressionante, uma cena parece complementar a outra, falando, ambas, do mesmo. Ao tirar a política e trazer o homem ao campo de batalha, Guerra ao Terror consegue falar de amizade, saudade, amor, confiança, lealdade, medo, arrogância e outros, sem deixar de ser, como disse, um filme de ação, um filme de guerra. A perda de alguns amigos e a chegada d’outros deixa o ambiente conturbado, a eficiência e arrogância do personagem vivido por Jeremy Reener, por exemplo, deixa o clima nebuloso também. Finalmente um filme sobre tal tema conseguiu trazer homens em conflito consigo mesmos, pois estão com os sentimentos à flor da pele. Em meio à tanta tensão, ainda surge tempo para se desenvolver amizade e confiança, não só entre soldados, mas também com um pequeno menino residente local que parece já não ligar para as cenas que acontecem em seu território.
É claro que existem erros no filme. Talvez ele careça de uma história, talvez não. Talvez não retrate aquilo que realmente é um ambiente de conflitos terroristas, talvez não. Talvez um ou outro persongagem seja um estereótipo, como o Sargento William James: o homem fechado, arrogante, mas eficaz. Talvez não. Há quem diga que o filme é uma divulgação daquilo que Bush rotulou como Guerra ao Terror. Apesar da coincidência semântica, acredito que não também.
Para citar as qualidades de Guerra ao Terror, não é preciso descrever seus personagens, contar sua história, sua sinopse ou dizer que ganhou este ou aquele prêmio. O filme conta com uma direção impecável, surpreendente, com uma direção de arte que reproduz o ambiente com clareza e exatidão, fotografia e trilha sonora corretíssimas. A obra é tecnicamente perfeita, mas não trata-se só disso. A principal qualidade do filme é nos lembrar que esta e outras tantas guerras nos chegam sempre como história em quadrinhos: E.U.A vs Iraque, Aliados vs. Eixo, Triplice Entente vs. Tríplice Aliança, etc. Mas que, na verdade, os verdadeiros protagonistas tratam-se de seres humanos, como nós. Pessoas que estão passíveis a erros, erros que podem ou não determinar um fim ou um recomeço aos conflitos, pessoas que constituem uma família antes de irem combater seus “inimigos”, enfim, pessoas que muitas vezes nem saber por que estão lá.
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