Optando por um esquema narrativo semelhante ao desenvolvido pelo autor e diretor Guillermo Arriaga e Alejandro Gonzáles Iñárritu, dos consagrados Amores Brutos (2000), 21 Gramas (2003) e Babel (2006), Corações em Conflito (Mammoth, 2009) nos apresenta estórias que se passam em diferentes partes do mundo e que se cruzam: na capital financeira Nova York, moram o casal Leo (Gael García Bernal) e Ellen (Michelle Wiliams) e sua filha Jackie; nas Filipinas, vivem os dois filhos da empregada do casal – cuidados pela avó em meio à pobreza e violência do país – e no novo centro financeiro mundial, em Bangkok, se desenrola a estória de Leo e sua descoberta da cidade, local para o qual tem de se deslocar para fechar um contrato de negócio.
A longa jornada de trabalho de Ellen, que tem de cumprir turnos noturnos no hospital onde é médica, dificulta a relação de proximidade com a filha, que acaba sendo substituída pela empregada filipina Glória (Marife Necesito). Cria-se entre as duas uma relação de afinidade mútua: enquanto a garota passa a se interessar cada vez mais pela cultura filipina, sua língua e religião, chegando inclusive a ir a uma missa com a babá – o que desperta ciúme na mãe ausente –, Glória passa a cultivar um carinho cada vez maior por Jackie, que em um dos belos momentos da película confronta primeiramente a crença católica de Glória, particularmente sobre a teoria criacionista, para depois equacioná-la com um “E se Deus tiver criado o Big Bang?, em uma tentativa de conciliação entre sua crença científica e a religião.
Leo, criador de um website de jogos que virou sucesso na internet – um clássico representante da geração Y que se deu bem – parte à capital tailandesa, como ele mesmo diz, só para assinar um papel onde conste uma linha com pontilhados. Hospeda-se em um elegante e tedioso hotel, onde o tempo não passa. O serviço de massagem tailandesa que convida ao sexo é negado, assim como o serviço vip oferecido por outro hotel que ele busca mais próximo à praia. Fugindo de uma experiência turística enlatada, Leo toma um taxi à procura de um bangalô à beira mar. No meio do caminho, depara-se com um elefante, que o encanta e o assombra. A natureza em sua plenitude, diante de seus olhos, o comove. A vontade de descobrir o local e buscar uma experiência capaz de preenchê-lo o leva aos bares e discotecas da cidade. O desencantamento se dá quando ele descobre a quantidade de prostitutas que há no local buscando turistas que paguem pelo serviço.
O tema da prostituição também está presente nas Filipinas, neste caso, a prostituição infantil. O filho mais velho de Glória, uma criança de 12 anos, passa a procurar trabalho para que a mãe não precise mais trabalhar nos Estados Unidos e assim possa voltar à sua terra. As tentativas do garoto se veem frustradas por uma mulher que paga seus serviços com doces e por sua avó que o leva a um lixão para mostrar-lhe a pobreza e o trabalho penoso que sua mãe se esforça para privá-lo. O garoto, porém, em uma noite em que decide sair de bicicleta, é roubado por outras crianças e depois violentado sexualmente por um pedófilo estrangeiro em um local onde costumam permanecer crianças que se prostituem. A violência nos países subdesenvolvidos, exercida inclusive por turistas de países desenvolvidos, nos é exposta de maneira assombrosa.
Nesse filme, o que explica seus personagens é o processo de globalização e seus efeitos perversos. Ao mesmo tempo em que o mundo globalizado permite o encurtamento das distâncias e a possibilidade de viajar a outros países em busca de emprego (no caso de Glória) ou de viagens de negócios (no caso de Leo), ele tende a afastar as pessoas, física e emocionalmente, e causar-lhes uma relação de estranhamento entre o sujeito e seu espaço. O sentimento da falta de pertencimento, representado principalmente na personagem de Michelle Williams, e os desencontros provocados por um mundo fraturado é patente. A miséria, a pobreza e a prostituição dos países periféricos não poderiam ser entendidas sem a relação de exploração exercida pelos países centrais e seus estupradores. Mas aqui ninguém é poupado do sofrimento do mal comum de um mundo cada vez mais individualista, egoísta e partido.
Corações em conflito é uma obra-prima do século XXI que dialoga diretamente com seus problemas.
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