Antes de mais nada, Roma de Alfonso Cuarón é uma merda. Mas calma, eu já explico o por quê. Não que seja culpa das escolhas técnicas do cineasta, ou que ele seja algum deus que conduziu a história humana de forma enganosa. Mas não temos aqui uma protagonista, ou melhor, temos uma protagonista que não serve para celebridade. Ou ainda melhor, agora definindo, uma coadjuvante com ares de protagonista, mas que segue não sendo. Ou só eu percebi que os únicos que têm cara de mexicanos mesmo neste filme não fazem parte da minoria dominante? São faxineiros, motoristas, bandidos, subversivos, maltrapilhos.. Mas não estão em uma posição boa.
Roma, ou melhor, amoR, como também poderia ser chamado, é sobre uma faxineira com uma vida bastante difícil, em um México bastante difícil, diga-se de passagem. Afinal, é os anos 1970, e para quem só sabe lembrar da “gloriosa” Copa do Mundo em que Pelé nos trouxe o caneco, na realidade, para os mexicanos como Cleo (Yalitza Aparicio), a memória latente eram de casos como o Massacre de Tlateloco, em 1968, onde estudantes que se manifestavam acabaram mortos de forma violenta, com tudo sendo bem escondido da população.
Alfonso Cuarón não assina somente como diretor, mas também como diretor de fotografia, produtor e editor. Mostrando-se um artista completo. E embora eu não concorde com muitos críticos e cinéfilos de que este é o filme do ano, um ano fraco se for pensar no cinema hegemônico do mercado mundial (os Estados Unidos), mas muito bom para o resto do mundo (bons filmes na Noruega, Coreia do Sul, Espanha, América Latina..), ele é certamente um dos mais fortes. É potente, disso não há dúvidas. Mais ou menos o que eu falei de Interstelar (Interstellar, 2014) há alguns anos atrás, quando afirmei que não se tratava do melhor filme do ano, mas certamente um dos mais potentes: seu avanço na inserção de elementos da física e a necessidade de estudar muito para fazer um filme científico, não ficcional, seguirá sendo relevante.
Em primeiro lugar, após fazer filmes hollywoodianos muitos importantes e se tornar um dos cineastas mais relevantes desta época, Cuarón traz os olhos do público para o México de 1970, e para o seu olhar intimista. Muito se fala que na verdade é uma memória sobre a sua própria infância, seus próprios pais, suas babás e todas as suas feridas abertas. Então, em segundo lugar, a sua visão pessoal e íntima de um país. Amor e ódio parecem rondar a relação do cineasta com o seu México. E foi na tela, em Roma, que essa relação se deu artisticamente, em vias de fato. Em terceiro lugar, a política com a já tão falada desigualdade social entre mexicanos (astecas) e mexicanos (espanhóis “brancos”), mas também o México do PRI, Partido Revolucionário Institucional, que apoderou-se das conquistas da Revolução Mexicana e acabou se tornando um caudilhismo barato sem fim no poder, massacrando o povo mexicano e sempre mentindo para persistir no poder. Algo que durou até a eleição de Obrero neste 2018, mas que ainda não sabemos que rumo tomará. O símbolo do PRI e o seu candidato Echeverría, permeam Roma a todo momento, bem como dizeres de indígenas clamando por mais terras – ou uma pequena parte delas assegurada. Luis Echeverría, eleito presidente na época em que se passa Roma, indo até 1976 como presidente da nação, teria uma relação ambígua na política: gostava do socialismo fora do seu país, trazendo até mesmo exilados de países como Chile e Brasil; mas internamente, perseguia militantes e até mesmo assassinava sem dar respostas públicas. É o caso do famoso episódio de El Halconazo, em 1971, que aparece na metade de Roma, mostrando o assassinato de jornalistas e estudantes pelo grupo paramilitar Los Halcones, grupo de repressão do governo. Em quarto lugar, a minha parte favorita: as mulheres.
Babás, donas de casa, esposas e trabalhadoras: o que separa essas 4 categorias é evidente, mas o que as une se não o fato de todas como mulheres? Gênero identitário. “Não importa o que acontecer, estamos sempre sozinhas”, a patroa diz para a empregada, em um sofrimento que une classe burguesa e operária mais do que qualquer manifesto, enfim, mulheres em primeiro e último lugar.
Evidentemente, diferente dos patrões, as empregadas dormem em um quarto pequeníssimo, onde fazem as maiores bizarrices para pertencerem melhor aquela lugar estranho. Neste sentido, lembramo-nos do brasileiro Que Horas Ela Volta? (2015), onde a empregada da família mantinha uma relação maior com o filho, pelas necessidades e desencontros, do que os próprios pais. Curiosamente, e não por coincidência, mas por psicologia familiar e materna, é em Cleo que as crianças pequenas de Sofia (Marina de Tavira) encontram um abraço, um afago real. Cuarón disse que, em seu olhar de criança, a sua babá, Libo como era chamada, foi vista muito depois como uma mulher com necessidades pessoais, financeiras e sentimentais; não somente como aquele ser que limpa a sua casa e está lá para servir as suas necessidades, com a sua humanidade completamente despida. Nem o olhar puro de uma criança conseguia enxergar na babá uma humana, era morava lá e estava disposta a ouvir gritos de sua mãe por não limpar a merda do cachorro. Por que diabos ela seria um humano mesmo?
Abandonada por seu namorado, e grávida, em condições financeiras.. (de uma babá mexicana dos anos 1970) péssimas, Cleo não chora. Muito diferente de Sofia, sua chefe, que ao perder o marido (que pouco aparece) para outra mulher, desaba em lágrimas e por pouco não tenta o suicídio. Cleo é forte, parece ter sido treinada para não chorar – e se o faz, o mundo lá fora parece não suportar e desaba também. Ela é a encarnação de Maria, Maria de Milton Nascimento: “Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer no planeta.. é a força, é suor.. De uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta”. Em nenhum momento, assim como o garoto Alfonso Cuarón, Cleo parece se indagar do motivo de ser quem é, estar nas situações em que está e das razões de tudo aquilo. Ela só aguenta, aceita o status quo. Mas é forte, isso não se pode negar. Quando o namorado a abandona no cinema, assistindo Sem Rumo No Espaço (Marooned, 1968) – sim, que serviria de inspiração para o fabuloso Gravidade (Gravity, 2013) – Cleo está em uma imensidão, e se coloca vagando, perdida; mas quem se importa com ela e a sua vida de empregada? Os aviões em cima de sua cabeça continuam seguindo, indo e voltando, aviões de que ela, possivelmente, nunca desfrutará. A realidade é dura no bairro de Colonia Roma, mas ela nem incomoda tanto quando se possui tanto serviço a ser feito. É uma espécie de variação nostálgica de Som ao Redor, mais voltado para o conflito específico de uma parte da vizinhança, e não de um prédio inteiro.
Pode ser que seja na belíssima e tocante cena final, na praia, que as crianças percebam que se trata de uma Cleo humana, mas ainda com uma roupagem de super-heroína que poderá tudo e que estará sempre lá, disposta, sem descanso. Quando o seu então namorado, Fermín, interpretado por Jorge Antonio Guerrero, despido, completamente nu dança na sua frente, em uma espécie de demonstração de sua virilidade, de sua masculinidade saudável e afrontosa, a percepção causada em Cleo não é de tesão ou amor, mas de graça com tudo aquilo. Seria ele um touro pronto para disputar o seu corpo com algum outro macho da tribo? Deselegante a masculinidade imposta por Fermín, masculinidade essa completamente diferente na hora de matar um inocente, ou de amar um filho que é seu. Não por acaso Roma é um nome feminino, porque o filme também é.
Gosto de pensar que, longe de qualquer “romantismo tosco” com o genocídio sofrido pelos astecas, a sociedade mexicana é sim desigual, e não só Roma evidencia isso, está em qualquer metrô da Cidade do México, está no muro almejado pelo doentio e farsesco homenzinho branco do norte Donald Trump, está na sua estrutura econômica (indígenas limpando, casta espanhola mandando). Quem não consegue ver a continuidade histórica da exploração no México, ou melhor, na América Central, desista de ler livros sérios sobre história: não conseguirá ver em lugar nenhum. Longe de mim querer comparar desigualdades, mas é mais fácil perceber os crimes cometidos contra povos originários, de forma silenciosa e violenta, no México do que em muitos países africanos. Longe de ser uma história dos bonzinhos, os explorados não são necessariamente bons pela condição em que estão, e não sei qual é a droga que andam usando na atual juventude politizada – digo isso pelos comentários e críticas que existem por causa do debate aberto por Roma sobre o passado dos ameríndios -, mas a exploração produzida pelos espanhóis chega até 2018, é algo muito diferente das conquistas feitas pelos povos que dominavam o atual território do México quando os espanhóis chegaram. A exploração europeia é muito mais virulenta, profunda e radicalmente moderna do que uma conquista de caçador e presa, como foi na antiguidade humana. A escravidão existia entre os astecas; sim. Exploração; sim. Mas nada se compara a 500 anos de submissão através do capital, do poder de consumo, produzindo indivíduos desprovidos de humanidade, mesmo que possam consumir em liberdade, como Cleo, como Cleo e tantas outras Cleo’s. A terra parida desse genocídio, pode permitir que Cleo ascenda socialmente através do estudo, mas como prometer isso se nem mesmo sua patroa pode ser feliz, com todas as regras que a sociedade impõe mesmo para quem “está do lado de lá”? A conquista, a cobiça e a maldade sempre existiram em todos os povos, mas isso não justifica que nós, para avançarmos no tempo, tenhamos que colocar uns como bons, não, são explorados. São deficientes, esvaziados de sua própria história, que merece sim ser contada e recontada.
Assim como em Y Tu Mamá También, de 2001, e como Gravidade, Roma encontra o seu final em uma praia, na tentativa de uma fuga pela liberdade. O mar, originalmente feminino, na história humana já foi visto como mãe, pai, criador.. mas sempre como redentor de pecados, de erros e de mágoas. Cuarón mais uma vez se utiliza desse recurso, criando uma sensação que não se deixa escapar por se desencadear de uma condição opressora.
No final, Cuarón apresenta um site que visa contar a história, ajudar e humanizar babás – posicionamento relevante, para além de simplesmente fazer um filme, demonstrar uma ação. Afinal, não se quer que essa elite que assimilou a cultura dos próprios indígenas, se usou dela e vive nela, seja expulsa ou sofra um novo genocídio, mas que “os de baixo” possam assimilar as suas conquistas econômicas, a sua independência intelectual e social, não é pedir demais. Afinal, não era em Roma que os ditos bárbaros possuíam a sua cultura assimilada após conquistados? Não foi, centenas de anos depois, que Mussolini cooptava jogadores argentinos para servir a seleção da Itália, desde que morressem pela Itália? Roma é um grito silencioso, enfim, um filme gigante, coloca o dedo lá na ferida, e por isso é uma merda. Deixa a gente indignado, com ácido no estômago, mas se o cinema servir pelo menos para nos tirar do conforto da vida que engana, ótimo, que bata-se mais!
Aí, descordo de Cleo, estar morto pode ser bom pela prisão social em que está, mas estar vivo e saber pelo que se luta, é bem mais relevante.
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