Durante a Revolução Russa (conhecida como Revolução Soviética ou Revolução de Outubro) em 1917, Lenin e seus camaradas, bem como seus diversos militantes e seguidores, estavam em um impasse: deveria a arte ser política? Sim, e por conseguinte, a arte soviética seria rigorosamente política. Hoje em dia vivemos outro impasse, diferente mas que gera reflexões, deve ainda a arte, especificamente o cinema, ser político? Isto é, se posicionar, mostrar diferentes lados, debater, concluir, voltar ao início, e mais além, defender com unhas e dentes uma posição? Porque é claro que Una Mujer Fantastica (2017) se posiciona a favor da comunidade LGBT (isto é, a comunidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Mas de que forma faz isso? Ora, não é preciso ser um grande cinéfilo para se entender que "não é todo filme que tem um cara assim tão diferente como protagonista", como ouvi em algum lugar. Só que esse cara diferente se encontra em cidades muito comuns, embora não percebemos, quando passamos apressados por eles e elas através de grandes capitais. Note-se que Santiago do Chile nem é muito apresentada como a capital sul americana deste interessante país, poderia ser no México ou no Brasil, é uma história que abraça fronteiras.
Logo, quer queira quer não, Una Mujer Fantastica transborda politicagem: preconceito, sexo, repressão, opressão e por aí vai. Entretanto, seria possível hoje, fazer um filme sobre alguém qualquer como Marina Vidal sendo totalmente apolítico? (aliás seria possível qualquer coisa sem isso?) Se vivêssemos em um mundo cor de rosa (céus, a comunidade gay iria adorar um arco íris gigante no céu todo dia) e o preconceito não transbordasse nossos poros, se travestis não fossem espancados nas ruas sem sabermos simplesmente porque sim e tantas outras formas opressivas contra essas pessoas e suas escolhas sexuais, bem, aí poderíamos ver um filme sobre Marina passear com seu cachorro, tentar um novo emprego, ser uma tartaruga ninja, sei lá. Mas absolutamente não há, não existe a mínima possibilidade, de se fazer hoje um filme sobre um travesti sem ser p-o-l-í-t-i-c-o, é como não sei, fazer um filme sobre judeus em 1942 abordando suas férias natalinas no Canadá! Haja paciência por parte daquele que assiste e haja sacanagem por parte de um diretor como este ao elaborar uma obra assim. O cinema está enraizado no seu contexto histórico-social, lamentemos - ou não.
A belíssima Daniela Vega, atriz trans mulher que faz o papel principal de Marina, atua o filme todo pela forma física de andar e pelos olhos. Então é muita prepotência acusar Una Mujer Fantastica de melodrama LGBT, já que Daniela atua o filme todo com expressões contidas, a sua vida vai de ruim a pior no que deveria ser um dia de reflexões e felicidades (o seu aniversário com o namorado), há percas, há mortes, há opressão e derrotas atrás de derrotas começam a aparecer. Sua vida se choca com tudo aquilo que aquele indivíduo, tão comum, parece ter levado centenas de anos para deixar no mínimo.. estável. E a inteligência da direção de Sebastián Lelio é justamente essa, mostrar como é inconstante a vida de uma trans mulher, mesmo em uma cidade que ao menos aparenta ser mais progressista em temas delicados como este - afinal estamos falando de uma Santiago cosmopolita e aberta ao mundo exterior. Tudo vai ladeira a baixo, não interessa que atitudes a nossa mulher fantástica tome, dos mais violentos aos mais contidos, tudo tem tudo para dar errado e sabemos disso, Lelio expõem isso. No momento não conheço muito do universo do cineasta chileno, e talvez isso seja bom, pois não nutro nenhuma opinião pessoal sobre o cinema do diretor, que busca no espanhol Pedro Almodóvar um chão em comum, mas fica bastante óbvia a sua capacidade de montar um cenário e encaixar personagens nele, sem soar cafona com a atual moda do cinema pós-2000, que são as luzes de neon.
As referências a Hable con Ella (2002) vão desde o início, com as Cataratas do Iguaçú, a luta pela independência de trans, cores quentes em ambientes frios e a música como libertação pessoal, principalmente na questão de gênero. E este título que parece mais uma continuação do universo Marvel dos Vingadores é extremamente poderoso por isso: trata-se de uma heroína dos dias comuns, que por vezes anda, por vezes dirige, pega ônibus e até mesmo voa, quando arranja um espaço na sua conturbada vida para que isso se torne possível. No fundo, para além de suas capacidades técnicas, me pego pensando em como uma pessoa com uma orientação sexual diferenciada da biologicamente proposta pela natureza se sentiria assistindo a esta película, teria ela em comum os mesmos problemas, medos, lutas e situações? Porque, para além de lutas políticas, aqui não temos um exemplar panfletário (embora faça isso com elegância, e que como eu já disse, o cinema jamais deve se privar disso), mas um filme recheado de mensagens, formas de resisência. Ainda melhor, qual seriam as reações de alguém como o filho de Orlando, extremamente patriarcal e machista, que parece não atingir níveis maiores de violência por respeito ao pai, ao assistir? Porque mexer com emoções e opiniões formadas, de forma exemplar, é o melhor que o cinema pode oferecer em um mundo tão sem cor.
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