Talvez aqui tenhamos o primeiro grande filme sobre a era Trump na América. É fato que o sonho americano é bem hedonista e com o tempo ficou bastante desacreditado, marcado pelas mazelas que causou em si mesmo. Talvez o sonho americano, o american way of life tenha morrido antes mesmo de ter nascido, já tendo, desde o seu berço, criado um monstro. Isso não significa que ele ainda não destrua vidas, isso não dá margem para que ele ainda não seja almejado, perseguido, e obviamente, sonhado. Ainda é. A Era Trump ainda é nova para este que aqui escreve, mas desgastada o suficiente. Os Estados Unidos da América parecem viver uma crise parecida dos anos 1920, 1930, quando seu sistema quebrou no meio e quando seus pedaços atingiram o mundo como cacos estilhaçados de vidro, fazendo o mapa geopolítico sangrar. A crise é familiar, é financeira, é social, é educacional, é gigante. Charles Bradley colocara: “Why is so hard, to make it in America? I try so hard, to make it in America a land with a milk and honey..”. Parece cada vez mais difícil obter sucesso na América.
Aí que entra Lady Bird, da diretora Greta Gerwig, nascida em Sacramento, a cidade da sua própria personagem Lady Bird no filme, o que pode deixar evidente se tratar de uma autobiografia, ou de uma homenagem a própria adolescência. Que seja. Enfim, finalmente um filme dirigido por uma mulher - formadada nada menos e nada mais do que em Inglês, Filosofia e Dança – que entra em debate no fim do ano, no início do ano e para os pomposos prêmios do mundo, o Globo de Ouro e Oscar, principalmente. Lady Bird pode parecer refletir sobre uma adolescente em crise em qualquer época e em qualquer sociedade do mundo, mas não é, infelizmente aqui as questões são tipicamente dos atuais países capitalistas com um sistema de mercado predatório em crise, e obviamente, também ditados pelos sonhos específicos da personagem.
Saoirse Ronan, atriz que sempre dialogou bem com um público feminino adolescente, é quem dá a Lady Bird vida nas telas. O próprio nome já é uma curiosidade, já que Lady não acredita em nomes dados pelos pais, do qual o seu seria originalmente Christine. Sua atuação é bastante importante para o filme, já que é através dela que tudo se torna verossimilhante, aceitável. Não é simples fazer uma adolescente em crise, ao menos que você conheça profundamente o que é ser assim. E este é um dos pontos importantes de Lady Bird para a sua ligação com o público, vi muitos comentários do tipo: “Parece a minha autobiografia” ou “Quem fez este filme sobre mim?”, no que diz respeito ao público mais “teen”.
Mas por quê? Porque há aqui um público tão específico? Porque a adolescência é uma fase difícil em qualquer época e em qualquer canto do globo, mas na realidade atual dos Estados Unidos da América ela é bem semelhante das dificuldades dos adolescentes do Brasil, principalmente no que diz respeitos as famílias com uma renda familiar mais estável, embora não tanto. Aí entra a dificuldade em sair bem em diferentes matérias com diferentes propostas, uma pressão e tanto que sempre é, perder a virgindade, conseguir um emprego razoável, passar na faculdade, ter amigos e amigas legais, ser bem visto entre os estudantes da sua escola.. Ainda que o filme derrape em alguns esquemas no roteiro (a questão da eleição de Lady Bird na escola simplesmente é esquecida), a sua proposta e os contornos que dá a ela, são bastante relevantes. E é essa relevância que nos faz entender como dialoga bem com um público tão específico e além. Uma pista para isso: “Por que não pareço a garota da revista?”
Lady Bird, ou Christina, age de forma bastante espontânea, ainda que possa parecer hedonista para o público, ou mesmo para suas amigas, suas atitudes só podem ser explicadas pela palavrinha autodescobrimento. Que fase melhor para descobrir isso (você, nós, eu) do que aos 16, 17, 18.. anos? E que fase pior para descobrir que o seu país tritura seus pais e seu futuro também? Seu tom político, “Óh, não seja tão republicana”, é o que o torna muito mais profundo que outros filmes de propostas semelhantes como (500) Days Of Summer (2009), por exemplo. Mas há ainda três outros pontos bastante relevantes: a homossexualidade, o familiar e o religioso (leia-se católico). Talvez essa seja outra grande sacada: tirar da protagonista o protagonismo dos problemas. O ator Lucas Hedges, que coleciona bons filmes, um atrás do outro ultimamente, é quem está na pele do primeiro namorado de Lady Bird, entregando o "problema" da homossexualidade e já trazendo o da religião em si. “Como posso ser um bom moço católico, adorado pela família como sou e ser gay na América?”, seus trejeitos de garoto tímido e bondoso parecem um disfarce para o que tenta esconder. Uma contradição que não deveria existir em uma sociedade não menos do que razoável. Lá pelas cenas finais, quando Marion (Laurie MetCalf), mãe de Lady, chora em uma triste despedida, sozinha dentro do carro, é quando os problemas familiares ficam evidentes e chegam ao ápice: o racismo de Lady para com seu irmão; o pai e o filho disputando o mesmo emprego, sem nenhuma esperança para nenhum dos dois; a mãe que segura financeiramente uma família nas costas – ou no bolso; o pai depressivo, mas sempre bondoso, porque só sabe ser isso... Revelando um filme adolescente, mas maduro, que sabe ser questionador sem dar respostas irrelevantes.
Mas a “América” quebrada é culpa das famílias tradicionais cada vez mais em crise? O contrário parece ser muito mais provável, mas Greta escapa bastante de lugares comuns. Principalmente por colocar Lady Bird como questionadora por natureza, a natureza de sua idade, de suas escolhas. O seu conflito com a religião não é econômico, por exemplo, não está no pacote dos “EUA em crise com Trump”, mas é pessoal e é moral. Questionar dogmas católicos não é porque odeie o lugar onde estuda e nem os dirigentes de lá, mas porque não estão em seu projeto de vida, embora ela provavelmente não tenha um projeto completo, ninguém tem. Talvez se trate de uma película com um sabor tão encantador porque homens podem se esforçar, mas nunca fariam um filme assim sobre uma mulher, sem ser nada mais que isso, um esforço.
Um exemplo relevante do bom caminho seguido por Greta seja o personagem do ator Timothée Chalamet, que parece ser na vida real o mesmo charlatão que seu papel expõem, um inseguro questionador que diz ter as respostas que não tem, um embuste. A cena em que nossa protagonista perde a virgindade possui uma verdade que talvez a maioria de nós nunca tenha descoberto, felizmente ou não, o não brilho de uma primeira transa. Pois a sinceridade de seu segundo namorado ao dizer que é “só mais uma entre outras” esconde uma crueldade doentia na nossa sociedade, tornar as relações pessoais cada vez mais líquidas, não significa que elas precisam ser duradouras, mas o desrespeito ao momento. Os jovens do mundo parecem estar cada vez mais se perdendo nesse labirinto, não é acaso que Lady, depois de toda a sua rápida viagem pelo mundo dos “descolados e diferentes”, volte a sua velha amiga insegura de sempre, onde parece encontrar seu único porto seguro, que logo irá perder.
Por isso o segundo título ganho aqui no Brasil mereça ser tão criticado, como quase sempre são, ora, “É Hora de Voar” quando se trata de quedas e saltos chega a ser insensível. Não se trata de um simples exemplar de filho que corre do ninho para viver a sua verdadeira vida, não há só essa opção e não é isso que Lady Bird encontra na sua vida adulta. Faça-me o favor. Justamente o contrário: Lady Bird liga para os seus pais e revisita o seu primeiro amor, começa a valorizar o lugar de onde veio, procura entender a mãe mesmo sabendo que ainda não conseguirá. A garota tenta se tornar tudo o que não queria ser quando chegasse nessa hora, mesmo que seja da forma mais simples possível, e ainda que não saiba se tudo aquilo que almejou lhe trouxe a tão desejada felicidade.
Mas é importante lembrar que se trata de um filme simples, não estamos falando de um possível predador de prêmios, ainda que possa se tornar, sempre pode-se. E isso o torna tão humilde. Não há uma fotografia pomposa que chega a doer os olhos e enjoar o estômago, como acontece em filmes que miram o Oscar. Não há uma duração de três horas e nem uma trilha-sonora magnífica e absurda que lhe deixa surdo. Há uma vida analisada e discutida no que diz respeito ao que o público quer julgar ou não. Dialoga com a juventude transviada de sua época, que parece cada vez mais insensível e fria, mais até do que os de cabelo brilhantina, que ao menos aparentavam ter cor em suas atitudes. Há um tom político que pode ser analisado daqui há muitos anos como dos artistas que perceberam o fim do Império Estadounidense, o fim de uma era, ou não também. Cinemão, ainda que não seja, porque não pretende ser, mas sendo, certamente, porque é.
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