Realmente não há como agradar a gregos e troianos ao comentar sobre Olavo de Carvalho, que entre muitas outras coisas se intitula um filósofo auto-ditada brasileiro. Ou você conhece nada ou já conhece o suficiente para assumir uma posição, assumindo uma posição, positiva ou negativa dessa figura tão icônica na mentalidade de alguns, tão demonizada na figura de tantas outras, a afetação do que será O Jardim das Aflições (2017) para você. Exatamente por isso escrever uma crítica sobre este longa-metragem relativamente curto, acaba sendo tão complexa, precisando tomar muito cuidado para não derrapar e como aquele que escreve sobre uma determinada obra, acabar não sendo honesto com o trabalho analisado.
Com direção de Josias Teófilo, estreante como cineasta, roteirista e documentarista, este que no exterior adquiriu o nome gringo de The Garden of Afflictions começa de maneira bastante interessante: travellings, planos abertos e lentos, cuidadosamente pensados e minuciosamente móveis. Anteriormente, havia lido algo sobre este então diretor que simplesmente não pude acreditar, porque Teófilo estaria trabalhando em uma obra sobre Tarkovsky e a relação com a cultura russa, possivelmente folclórica e não a soviética; para posteriormente trabalhar em algum documentário sobre humor com o apresentador brasileiro Danilo Gentili. Eu realmente não podia deixar de tentar entender do que se tratava afinal este O Jardim(..), porque no final das contas, o que poderia ser de uma obra cinematográfica que trata de um sujeito que ofende homossexuais e é respeitado politicamente falando sempre palavras desconexas e impróprias? Uma incógnita e uma temerosa surpresa.
Mas daí então o espanto, porque eu conheço bastante o Olavo de Carvalho do YouTube, a minha idade não me permite ir muito além, a não ser que busque reportagens em arquivos e afins. O então conservador brasileiro, que mora há muitos anos nos Estados Unidos da América, não estava a dizer bobagens conspiratórias indignas de alguém com tanta fama acerca do conhecimento que possui, principalmente para uma câmera que insiste em gravar tudo em uma qualidade inexplicavelmente ruim. Sim, o cigarro e a fumaça constante estavam lá, mas o que se vê no início de O Jardim das Aflições aponta ser um oposto: há realmente um "q" documentarista de cinema investigativo-contemplativo e o amontado de frases que fala o sujeito são lúcidas. Olavo coloca reflexões bastante interessantes sobre o poder do aumento do Estado, a diferença entre as monarquias feudais na Europa e o FBI hoje em dia (ainda que de forma não tão bem problematizada) e até mesmo uma crítica bastante válida ao Partido dos Trabalhadores, daqueles que sempre sofrem na mão dessa figura. Mesmo quando aborda a sua relação com a natureza e o porquê de tomar a decisão de preferir viver perto dela, e não distante, fazendo uma coorelação entre realidade x falsidade vivida, é possível notar um sujeito realmente crítico com o mundo que o rodeia por tantas décadas. Mas de repente, como em um passe de mágica, a edição decide colocar o impeachment de Dilma Roussef em 2016 e toda uma questão política, ainda tão quente no Brasil de hoje, e toda uma construção de personagem parece esvair-se, evidenciando aquilo que realmente é (curiosamente o II capítulo do filme tem um nome bastante parecido): um discurso político banal como qualquer um de seus vídeos postados nas redes de internet.
Quando Olavo fala, ainda nos 20 primeiros minutos do documentário: "Só isto aqui são obras sobre comunismo, nenhum comunista leu tanto sobre, caso contrário ele não seria mais comunista", acusa sem perceber, de forma bastante arrogante, daquilo que sempre fora acusado, como o jornalista Pedro Bial coloca em um recorte que aparece lá pelas tantas: "bonachão". Partir da ideia, aqui entendendo a frase não como um alívio cômico, de que fulano é fulano porque não leu, ou porque leu errado, acaba sendo superficial demais. Principalmente para aquele que desde que surgiu como formador intelectual, vem sendo acusado de não ter um diploma nisso ou naquilo, de não ter feito tal coisa ou de ter lido erroneamente determinada obra. Pois quando você forma essa ideia, você anula a própria capacidade intelectual do outro, o que pode custar caro como golpe baixo vindo de alguém de um possível patamar ao mesmo nível. Ainda que sempre cercado de livros - alguns realmente sendo obras muito boas (e principalmente, sérias!), nada de teorias conspiratórias sobre monstros marinhos produzidos pelo Laos ou pela Coréia do Norte, não tenho como afirmar que Olavo leu todos de fato. Porém, supor que "você não entendeu" ou "sequer leu isso aí" é zerar a própria tomada de consciência do indivíduo, já que ele pode sim ler e sim, discordar plenamente. Como a própria estrela do documentário coloca sobre buscar não uma opinião própria, mas aquilo que você acredita ser verdade, e ele próprio não deve ser colocado em dúvida do que leu ou não, Olavo pode muito bem ter devorado todos aqueles livros e ainda assim discordar deles. E é bom lembrarmos disso para entender Olavo de Carvalho, aquele que anda sempre partindo daquilo que aposta todas as suas fichas ser verdadeiro.
Olavo chega a colocar que o PT é a mesma coisa que o jornal A Folha de São Paulo, embora tenha trabalhado neste e não se coloque como militante por causa disso. Voltado de contradições, um documentário sobre si não poderia ser diferentemente polêmico, assim como a pessoa que o retrata, em um festival de cinema no Nordeste, por exemplo, chegou a haver boicote de cineastas ao programa como um todo pela participação do filme. Daqueles que acusam Olavo por não aceitar teses tão irrefutáveis e já difundidas no meio acadêmico, preferiram um não confronto, ou um confronto mais direto, se preferir ser entendido assim. A questão é que o personagem, não um fictício, mas real, é uma polêmica ambulante e parece estar sempre cercado de ignorantes. Mesmo daqueles que não o apoiam e seriam uma "oposição" a sua ideologia. A sua própria filha acabou publicando um grande comentário nas redes, bastante destrutivo, sobre a personalidade Olavo de Carvalho, depois do lançamento do documentário. Por tudo isso, mesmo aqueles que se dizem contra a censura, e de certa forma acabam censurando o que Olavo tem a dizer (considere-se a troca de ideias importante, o confronto pelo debate), nada mais pode surgir com espanto.
Chega-se a dizer, como Olavo coloca por exemplificação, que a máfia seria uma afronta histórica ao poder opressor e obsessivo do Estado moderno, desde que o poder familiar existe. Ignorando contextualizações ou temas que seriam ainda mais caros para essa colocação, como centralização burocrática e corrupção, exatamente aquilo que, segundo ele, o Estado insiste em colocar a seu mando. Como criticar algo que aparece a todo momento na frente de sua residência, tremulando com a bandeira dos Estados Unidos da América? Talvez não se perceba, dentro do discurso que permeia a sessão, que a paranoia pode estar tremulando na sua parede. A própria religião teria ficado aos pés do Estado que tudo pode no período contemporâneo, mas por que a religião surgiria mesmo no regime soviético a ponto de derrubá-lo, como na Polônia em 1980, por exemplo? A partir de uma colocação como esta, pode-se questionar afinal o que temem aqueles que boicotam este documentário, que no mesmo festival acabou abocanhando algumas premiações. Não é pelo porte intelectual - espero bastante. Seria indiferença? Se fosse passaria batido e ninguém esquentaria a cabeça com isso, então seria censura stalinista? Não creio em algo tão fora de moda. Seria preguiça ou exaustão? Possivelmente. É certo que o nosso "ilustre" astrólogo toma partes políticas bastante perigosas, mas não se trata de um documentário desrespeitoso (principalmente se for contar com as suas próprias ideologias), nem de um trabalho porcamente feito, embora não seja uma obra esteticamente elegante.
Sua edição é bastante confusa, e mesmo que não passe de 80 minutos (não chega a pecar pelo excesso), há pouco cenário, o que pode ter sido feito para dar uma visão mais íntima do biografado, mas que se torna muito problemático a partir do momento em que você vê muita pouca coisa em muito pouco tempo. Sim. Se é difícil somar contextos históricos, formas econômicas e linhas filosóficas, não é colocando uma coisa sobre a outra que vai se resolver esse obstáculo sobre o diretor como construtor de uma narrativa. Ainda que a fotografia seja bastante envolvente, principalmente numas estranhas jogadas ao estilo A Árvore da Vida (The Tree of Life, 2011), cambaleando pelo pátio da casa com uma envolvente estrutura familiar, parecendo não um referencial cinematográfico, mas um endeusamento do homem retratado - uma esquematização que acaba por interferir na própria edição.
Certamente, o fato deste não ser um produto abaixo da média deve-se a própria paralaxe cognitiva: o afastamento daquilo que se formula como teoria filosófica daquilo que se é, se assim não fosse, tanto Olavo quanto o documentário de Teófilo poderiam ser inválidos. Aqui eu não levei em consideração o que é verdade ou não sobre as polêmicas da vida de Olavo, nas questões de quem ele realmente é como um homem de família, até poderia, só que não estava interessado nisso mas no sujeito como um formador de opinião. Sendo assim, Teófilo talvez acerte por diluir o pensamento político (ainda que não se trate de uma adaptação do livro O Jardim das Aflições em si) e focar mais na análise sobre a filosofia, ponto forte de Carvalho como um intelectual de fato. Caso tratasse do impeachment em 2016 por exemplo, o documentário já estaria envelhecido e cansado antes de ser lançado. Curiosamente, o ponto forte deste como elemento cinematográfico é diluir o seu próprio cerne: Olavo. Nisso, O Jardim é em seu núcleo fílmico, não passando de uma própria representação daquele que trata, uma obra por vezes lúcida, por vezes confusa, quase sempre passando o limite do que pode ser aceito nas ciências políticas, sociais e na analise histórica. Mas já que Olavo é, isso quer dizer, existe. Não há razão para censura, apenas para reflexão. No fundo o que quero dizer é que se a realidade política do Brasil cria um pensador como este, precisamos aceitar que ele possa estar em documentários como este, e que boicotá-lo não é evitá-lo, muito pelo contrário, assisti-lo pode ser muito mais esclarecedor do que tomadas de atitudes rudes e pouco sensatas. Entendê-lo é entender o que leva tanta gente a considerá-lo uma divindade portadora de razão.
Interessante texto, tenho curiosidade por ver este filme mesmo conhecendo pouco o retratado.