Considerado um filmes fundamentais e mais memoráveis do cinema soviético, e por conseguinte, do cinema russo no geral, Obyknovennyy Fashizm ganhou muitas traduções ao redor do mundo: “Fascismo Ordinário”, “Fascismo Nosso de Cada Dia” ou até mesmo “Fascismo Cotidiano”. A temática fica clara, aqui se trata do movimento político que predominou na primeira metade do século XX no globo, principalmente na Alemanha Nazista e na Itália, mas também em Portugal, na Espanha e até mesmo no Brasil, com Vargas. Mikhail Romm, organizador deste impressionante documentário, obviamente toma uma posição, toma um lado (ainda bem) e não se esconde de atirar para todos os lados, como se diz, ataca estado-unidenses, alemães, japoneses.. embora não o faça com o próprio umbigo, da então União Soviética. Entretanto, em nenhum momento, por exemplo, é citado o nome ou mostrada uma figura de Stalin (eu realmente não lembro), principal líder político da Segunda Guerra Mundial, embora insistam em colocar Churchill ou Truman como grandes vencedores no cinema em geral, esquecendo a parte do Leste no conflito.
Aí aparecem dois pontos bastante relevantes sobre este documentário que aqui documenta-se: (1) as imagens, tanto fotografias quanto vídeos (com ou sem som), retirados e colhidas dos próprios arquivos, pessoais ou não, de pessoas integrantes dos, assim digamos, fascistas e ligados aos tais e (2) o simples fato de vermos um período histórico tão importante retratado por um país aliado que culturalmente, no Ocidente, não teve a sua visão tão ouvida pela maioria da população (filmes, músicas, nas escolas..), que é a URSS e seus 20 milhões de mortos, como cita o filme, em seu próprio território contra Adolf Hitler. Além do sarcasmo, do deboche, é claro. Aí vemos o líder nazista fazendo caretas, treinando discursos inflamados, fazendo poses dignas de Instagram fajuto ou Facebook comum, isso tudo mostrado lá em 1965; bem como caretas estapafúrdias de Mussolini, líder italiano. A impressionante capacidade de selecionar em arquivos aquilo que mais provoca ódio, paixão, risos e lágrimas, tudo isso, é o que faz de Obyknovennyy Fashizm um documentário tão monumental, imponente e importante – principalmente por hoje ser bastante desconhecido, ao menos é, visto o vasto selecionamento arquivístico feito para que este pudesse existir como filme (quase se pode dizer que há imagens únicas aqui, mesmo para quem estuda o período há muito tempo). Por exemplo, fico pensando no quão ainda me parece brilhante comparar a organização política de Hitler e Mussolini através de suas marchas pelas cidades (“Estes aqui parecem é que vão colocar fogo em Roma”), e o quanto isto diz não apenas sobre marchas militares e passeatas políticas, mas sobre esses dois sistemas como um todo, é saboroso a sensação de perceber a perspicácia da edição do que fora encontrado e selecionado para fazê-lo. Mas o que é o cinema, afinal? Obviamente, é o poder da imagem e do som, e esses são elevados quase em uma potência máxima aqui.
Porém, se tratando de um documentário P&B com mais de duas horas, o que faz deste exemplar tão fluido e influente? Para a minha pessoa, pelo menos, é a sua capacidade em não ser propagandístico (está muito mais para mostrar as fraquezas da Rússia no segundo conflito mundial do que para exaltar suas vitórias), assim como a sua capacidade em conseguir ser sarcástico sempre na medida certa. Mas como consegue? Este segredo está por trás do próprio Romm, que narra perfeitamente o filme todo, intercalado algumas vezes pelos discursos do Führer ou de bombas e balas, explodindo e estalando, lá e cá. Sua capacidade oratória, principalmente a sua retórica, mesmo que falando sozinho na maioria das vezes, é inteligentíssima e nunca soa forçada ou solitária. Sua missão não era nada fácil: tentar debochar, levantando profundas emoções, de um dos períodos mais negros da história humana. Obviamente o fez com louvor. É difícil lembrar de momentos em que nos fizeram rir com imagens do próprio Hitler e de Mussolini em um documentário com suas imagens originais de arquivo (Chaplin o fizera com a sua própria interpretação e carisma), embora o seu discurso como narrador vá muito além do deboche, e em nenhum momento falte espaço para reflexões profundas sobre o que é o ser humano, quando comenta de como os golfinhos, com uma capacidade cerebral nada limitada comparada a outros animais e mesmo a nossa, são utilizados como armas militares. Ah, o que é então a capacidade de pensar humana? Coloca-nos, em determinado momento Romm.. isso quando as imagens não falam por si só.
São muitas as reflexões colocadas durante a passagem da película, principalmente em questão ao futuro (que na atualidade deste texto em relação ao documentário, já passara) e as opções políticas colocadas em voga no mundo, aqui e lá, e assim por diante. Situemo-nos históricamente, ao fazer deste documentário acontecia um golpe na democracia brasileira que levaria a uma ditadura a partir de 1964, assim como em tantos outros países, mesmo naqueles com ideologias ditas socialistas, da qual a nacionalidade deste filme pertencera. Então a visão de Romm ao fim da película, em projetar um futuro onde as ideias fascistas não estariam totalmente enterradas, não deve nos parecer mera pregação e demagogia barata soviética. Aliás, impressiona a capacidade da narração em não ser demagoga, pelo contrário, bastante elaborada e desprovida de truques como meio de articular desonestamente suas mensagens, baseando-se em fatos daquilo que pretende atacar. Assim, Fascismo Ordinário é um documento de um tempo, falando sobre outro e que continua dialogando conosco, esbofeteando a nossa cara, mostrando-nos o que geram ideias erradas espalhadas pelas pessoas certas em difundir essas mesmas mensagens erradas, do futuro ainda não sabemos, mas do passado, Mikhail Romm e seu penúltimo filme em vida nos respondem com profundidade.
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