Billy Wylder foi realmente um cineasta eclético, sarcástico, romântico, com timing para a sétima arte. Não é novidade para ninguém todas as suas qualidades, o homem foi realmente muito versátil, genial em todos os gêneros. Logo após ganhar um Oscar, com The Apartment (1960, com melhor direção, melhor roteiro original e melhor filme), lançou essa comédia anárquica em plena Guerra Fria. Sim, enquanto todos - a massiva maioria - tratava o assunto com muita seriedade (leia, espionagem), só lembrando que entre 1961 e 1962, nada menos e nada mais aconteceu do quê: além de inúmeras independências de países africanos (diria que uns dez) violentamente, Yuri Gagarin ia ao espaço, a CIA invadia a Baía dos Porcos em Cuba, a crise dos mísseis, a URSS testava a Tsar bomba, logo Kennedy seria assinado e claro, o Muro de Berlim começava a ser erguido! Ufa! Viram só? Praticamente acontecimentos tão frenéticos quanto o roteiro deste filme que aqui retrato. Isso saliento para explicar que Wylder foi muito, mas muito cara de pau para lançar essa obra, que apesar de ser ocidentalizada e criticar os soviéticos em situações que necessariamente não fazem sentido (o fanatismo não era só de um lado, nem tudo que era produzido por lá era tão ruim tecnologicamente etc), pendendo, logicamente, para o lado dos EUA na maioria das vezes, o seu grande mérito é ser completamente proporcional em suas críticas e atirar para todos os lados: capitalistas, sempre apressados, esquecem a família, respiram dinheiro; comunistas soviéticos e alemães orientais, desconfiam de tudo, creem em um novo tipo de ser humano mas parecem ter o discreto charme da burguesia entranhado em seu ser, criticam os estado-unidenses apesar de amarem a sua propaganda de consumo e o espírito nazista/fascista, que persistiu durante muito tempo nas sociedades da Europa (e certamente ainda habita por lá), quando os trabalhadores alemães insistem em agir como se fosse a época do III Reich, levantando e batendo continência, como se ainda estivessem em uma era de Hitler sem o tinhoso.
Mas algo muito mais profundo pode existir em Cupido Não Tem Bandeira (Wylder parecia não ter bandeira, satirizando todo mundo em um momento em que todos achavam que este iria acabar, afinal, eram duas potências com uma guerra direta bastante provável com capacidade de autodestruição, mas que título horrível! Para variar), a questão que faz refletir, de que os homens precisam estar acima de ideologias para colocar as engrenagens da sociedade que criaram (intencionalmente ou não) para funcionar. Não é por que se morre por A, B ou C que eu sou superior ao outro que morreu por D, E ou F. Isso parece bastante simplório hoje, mas em 1960 isso não era, e talvez futuramente volte a não ser (o mundo parece novamente se encaminhar para isso), por isso a atemporalidade desta obra: não se trata de comunistas e capitalistas, mas de gregos e troianos, franceses e ingleses, jacobinos e girondinos, árabes e israelenses, islâmicos e cristãos, argentinos e brasileiros. Rivalidades porcas, bastante autodestrutivas e que, e essa é a parte pior, não possuem necessariamente muitas diferenças. Porque, apesar do comunismo ser teoricamente bastante superior ao capitalismo financeiro, ou ao imperialismo (sua fase anterior e em complemento), URSS e EUA, bem como seus aliados, nunca estiveram longe de ouvir um justo "Russians/Yanques GO HOME!". E para além do timing teatral e engraçado que Wylder colocara em seu filme, a sua visão, digamos assim, leitura político-social da época é que foi a cereja do bolo, ou o bolo inteiro "disso aqui". A última cena talvez evidencie bastante isso, quando o capitalismo se torna uma própria caricatura de si mesmo, quer dizer, então não fosse a União Soviética, o problema a ser enfrentado, o grande inimigo do capital talvez fosse ele mesmo? Ou melhor, a Pepsi Cola, ou a Sukita, sei lá? Wylder fora bastante honesto em sua análise global, talvez o melhor a ser feito fosse rir de tudo isso mesmo. Talvez não sendo um cidadão dos Estados Unidos da América, a sua crítica ao capitalismo "Um, dois, três e faça" fosse ainda mais severa e profunda*, mas o fato de colocar o capitalista (representado brilhantemente pelo hilário James Cagney) ao limite em seus excessos, ao ponto de tentar comprar os próprios cidadãos soviéticos/alemães orientais como produto de troca, simples e rápida, já vale como cartão de desculpas e prova, de que realmente não estava ligando para o que iriam falar.
O curioso é que a maioria do filme não fora filmada em Berlim, nem Oriental e nem Ocidental, mas em Munique, pois justamente quando começaram as filmagens deste, o famoso e tenebroso Muro de Berlim começou a ser erguido (eu havia comentado lá em cima o quanto o climão era tenso), por isso, pensou-se na época que o filme de Wylder não pouparia em nada ao escrachar o modelo social imposto pelos soviéticos, mas não somente, o que acabou desagradando as diversas faces políticas daqueles que assistiram em época. E talvez isso deixe claro o motivo deste filme ter apenas uma mísera indicação ao Oscar (que nunca foi termômetro para nada além de si mesmo, além de muito mais conservador naquele tempo do que é atualmente) de Melhor Fotografia em Preto e Branco. Nadinha. Nem melhor atriz coadjuvante, nem ator e o roteiro acabou esquecido, aliás, falemos um pouco sobre o roteiro! Conta-se um número equivalente de personagens principais dos dois lados (do mundo e de Berlim, claro), ou seja, apesar do capitalista MacNamara roubar quase todo o filme para si, a proporção é bem distribuída entre os diferentes espectros ideológicos. Otto e Scarlett, por exemplo, muito aquém da paixão de ...E O Vento Levou (Gone with the Wind, 1939), fazem um dos casais mais hilários que já presenciei nas telas. O fanatismo representado pelo ator Horst Bucholz e a negação de qualquer senso político de Pamela Tiffin, bastante estereotipados talvez, representam aquilo que faltou em Strangelove, de Kubrick, sendo essa sim, a grande comédia sobre a Guerra Fria, mais conhecida internacionalmente, mas não superior e nem inferior ao produto "cocalesco" de Billy Wylder, o amor entre Bela e Fera, entre os dois lados do xadrez geopolítico do século XX. "Este casal é uma bomba" poderiam dizer alguns, bem, ao menos eles poderiam causar a explosão de algumas, com a sua infantilidade e deliciosa inocência da paixão juvenil. Há, inclusive, uma discussão histórica se o filme foi ou não um sucesso nos Estados Unidos na época, a tese de que foi um fracasso faz mais sentido e parece mais crível também, basta entender a caricatura que são não apenas os russos, mas o próprio chefão da Coca-Cola, enganado por um ex-comunista qualquer, com um fetiche estranho por antigas nobrezas europeias e claro, o excelente: "Eu sou capitalista há apenas 3 horas e já estou endividado em 10 mil?", um tiroteio de risadas. Em sala de aula, os alunos na matéria de história nunca ririam tanto.
Phyllis MacNamara: – “Talvez tenhamos votado no homem errado.”
Scarlett: – “Isso não aconteceria na Rússia.”
Phyllis MacNamara: – “Lá eles não cometem enganos?”
Scarlett: – “Eles não votam.”
*O diretor nasceu na Polônia e emigrou da Europa nos tempos ferrenhos da Segunda Guerra, mas trato-o culturalmente como um indivíduo ocidentalizado, dentro dos padrões dos Estados Unidos da América.
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