Tarefa difícil contar o número de personalidades famosas que se encontram em 1900, começando pela direção, temos um que viria a ser o futuro vencedor do Oscar (e de tantos outros prêmios), Bernado Bertolucci – um dos cineastas italianos mais famosos de sua geração. Ainda nessa época, Bertolucci era tido como um dos cineastas mais inovadores e refrescantes do cinema, com filmes ousados teoricamente e tecnicamente. Na operação de luz e câmera temos Vittorio Storaro, em um trabalho lindo, com cores magistrais e paisagens amplas. Além disso, temos estrelas internacionais como Robert De Niro e Gérard Depardieu, ambos no início de seus auges como artistas. Ninguém menos do que Burt Lancaster, Romollo Valli, Donald Sutherland e Dominique Sanda. Assim como Stefania Casini, Stefania Sandrelli e Laura Betti. Um sufocante elenco de peso. E obviamente, apenas para não fugir a regra, na trilha-sonora há Ennio Morricone, que em época já tinha uma carreira não menos do que consolidada como compositor. Aí fica a dúvida para quem não assistiu, o que poderia vir de um 'projetão' desses? Arte, é claro.
Começamos acompanhando a vida de dois meninos, mas não só. Não é o nascimento de duas crianças, é o conflito de dois ideais no século XX, ideias que custaram vidas e reformaram esperanças. Um é filho do patrão, terá uma vida banhada em luxo e vinhos caros, irá apreciar a natureza e formar uma bela família; ao outro, nascido camponês, restará o suor. Até aí, tudo parecia correr como sempre fora, desde a Idade Média, ou quem sabe antes. Mas todos esses indivíduos, entre camponeses e patrões, entre servos e mandantes, iriam sofrer dos processos, não do roteiro de 1900, mas da história de 1900 – fator elucidativo da trama. Essa personagem louca, que também está presente no filme, embora invisível, pode-se sentir o seu cheiro, perceber o seu calor, mudará a tudo e a todos em proporções inimagináveis.
Mas também é complicado relatar 1900 e não esmiuçar sua técnica, filmado na Emília-Romanha (norte da Itália), com as luzes do cinematógrafo Vittorio Storaro, que não é novidade para ninguém no mundo da sétima arte, apresenta diferentes tipos de enquadramentos e movimentos de câmera ao longo do desenvolver. Quem conhece profundamente este estilo artístico reconhece a importância contribuinte deste para a formação imagética do cinema. Principalmente no quesito de “fazer brilhar os olhos”. A dificuldade colocada por tratar-se de um mundo de camponeses miseráveis e patrões corruptos, com grandes planícies e bastante grama, no mínimo deve ter exigido um bom esforço. Ao aparecer as bandeiras vermelhas em tela, o amarelo envelhecido logo é desviado de nosso olhar para ver o vermelho pulsante dos panos erguidos pelos revolucionários. Na segunda parte da trama, o épico político toma uma cor mais fria e soturna, com direito a uma neve suja e dias nublados, representando a ascensão de ideologias mortíferas e do eterno retorno para a luta de classes.
Há um tom erótico muito presente em 1900, principalmente entre Olmo e Alfredo, os meninos nascidos no mesmo dia, ainda quando pequenos, quando comparavam o pênis e quando adultos, chegando a ter relações sexuais com a mesma mulher. E aí entra uma curiosidade bastante interessante: em 1900 a nudez explícita, presente em muitos filmes do cineasta italiano, é muito mais voltada para o universo masculino (homens com o membro a mostra), do que para o feminino. Como geralmente o cinema e a arte em si tendem a ser. Até mesmo diante de uma provável batalha vemos Alfredo tentando fazer uma mulher chegar ao orgasmo em uma situação no mínimo estranha. Há também o patrão, pai de Alfredo, comparando o ordenhar de uma vaca com a masturbação de um pênis. Ao que se deve tudo isso? Apenas uma forma de chocar saindo dos padrões? Talvez, mas é materialista pensar que em um ambiente campesino, onde homens e mulheres viviam para lá e para cá, com diferentes intenções e em uma época onde tudo parecia mais difícil (e também mais fácil em relação ao sexo), há de se entender que relações sexuais surgiriam das formas mais inusitadas e com base material daquilo que era do conhecimento cotidiano: uma vaca, uma árvore, uma foice.. Portanto, é um forma deste filme em simplesmente ser fiel ao universo que retratou. Ao menos o é na minha – humilde – visão.
Assim também o é com outras questões além da nudez, como a morte de animais (nem sempre mostrada pela câmera, mas enunciada) de grande porte, moscas em excesso em cima das mesas, o convívio com a merda (sim, a do boi e da vaca), e por aí vai.. Uma ambientação até mais realista do que a de A Árvore dos Tamancos (L’albero Degli Zoccoli, 1978), vencedor da Palma de Ouro – filme italiano sobre a população campesina, mas aqui no século XIX e não no XX.
Portanto, para além disso, 1900 ou NoveCento, se propõe a ser uma enciclopédia da história da Itália (Monarquia, Socialismo, Fascismo, guerras..) desde 1901 a 1945, quando termina (e quando começa também, com uma reverência a Stalin, líder da URSS), ou seja, toda a primeira metade do século XX, o 1900, é o personagem principal deste. Corajosa tentativa de abraçar o mundo. Já no começo da película, vemos uma espécie de bobo da corte dizendo que (Giuseppe) Verdi morrera. Tratando-se de 27 de janeiro de 1901, dia da morte de um dos maiores compositores italianos, de grandes epopeias nacionalistas. O fim de uma era apresentada pelo roteiro, certamente – é quando o antigo mundo desaba e um novo se ergue, segundo a visão socialista revolucionária. Uma forma simples e humilde de se colocar essa questão, mas presentemente forte.
A luta de classes, foco de outrora, se torna então na luta contra os fascistas. O fim da primeira parte é justamente quando estes mostram a face, e aparecem como opressores de movimentos sociais, como o dos camponeses, foco de 1900. Mas atribuo a Bertolucci uma caricatura um tanto errada e desnecessária, por exemplo, na batalha entre camponeses e soldados, filmada de forma tão lindamente (onde camponesas se deitam ao chão em conjunto, quiças a cena mais famosa do filme), podemos refletir o motivo de, em cinco horas de projeção, nenhum daqueles outros personagens ser desenvolvido de uma forma, pelo menos, pequena. E isso diz respeito aos fascistas também, que eram muito numerosos e assustavam tanto os comunistas quanto a população em geral (os “apartidários”), que fica centrada apenas ao pequeno círculo de um casal doentio e seus capangas, não, a questão política destes era muito maior e mais perigosa, que ainda é citada, mas não devidamente mostrada e digamos, melhor desenvolvida. Não que eu considere o filme como um exemplo fracassado de péssimo desenvolvimento dos personagens, mas a sua duração extensa dá sustentação para algo ainda mais grandioso. E justamente por sua duração o filme é colocado de lado por uma boa parte do público, de hoje e da época de lançamento; logo, um aprofundamento maior entre socialistas e fascistas poderia deixar o filme mais intenso.
Pois bem, ainda que não entregue em sua maioria ações mais complexas, o ato final tenta elucidar este problema bastante evidente, tornando o filme quase enfadonho antes de sua conclusão. Começando pelo final, no “Ano da Libertação, 1945”, ao fim da Segunda Guerra, Bertolucci parece não saber justamente que rumo dar ao seu final. Toda poesia socialista escorre pelo ralo, e muitas atitudes parecem já não fazer sentido, como se a intenção da obra fosse maior do que ela teria a entregar-nos. Um lamento e tanto, mas que não tira um brilho que pertence a 1900, que para além de seus problemas é um filme corajoso em muitos aspectos (elogiar e criticar ideologias então em disputa na Guerra Fria, nudez masculina de atores famosos, violência explícita e narrativa diferenciada – além de longa, claro). Não tenho como trazer tais dados, mas fico muito curioso em saber como NoveCento fora recebido em países da época como URSS, China, Hungria, Bulgária, Romênia etc. Possivelmente que por sua retratação bastante ambígua, suja e pessimista de todo o movimento, o filme tenha sido até mesmo censurado.
Sei que a duração inicial do filme, tal como feita por Bertolucci, teria cerca de 8 horas de duração, sendo encurtada para o filme ficar mais “concorrido”, e que no Brasil, que em época vivia uma profunda censura, 1900 fora reduzido drasticamente (sendo surpreendente não a censura, mas sim que o filme tenha sido liberado). Um fato bastante curioso, já que parece não ter agradado nem gregos e nem troianos. Ou seja, nem OTAN e nem o bloco soviético.
Seu encerramento lança uma estranha cortina sobre as esperanças tão novas da população oprimida, o que virá de novo será melhor? Iremos enfim adquirir nossos direitos? Podendo decepcionar bastante aqueles que possuem um carisma maior com ideologias de esquerda (ou não, dependendo da criticidade de quem assiste). É fato que ao seu final a intencionalidade do filme centra-se mais em reflexão do que propaganda política, o que muitos críticos colocam como cerne de 1900: não se trata de uma propaganda política. Distante do que podem pensar alguns, se trata de uma análise crítica da história de seu próprio país, sabe-se lá, talvez até um encontro esmiuçado com as próprias convicções do realizador. Ao final, nada parece muito claro, assim como era no início, assim como sempre será? Não sabemos, mas "o patrão está vivo, o patrão está vivo".
O que não há como negar de forma alguma, é a inspiração de Bertolucci no cineasta magiar Miklós Jancsó, seus planos sequência, de forma a elucidar o vermelho diante do trigo, a diferentes rostos e falas, com uma planície a céu aberto, mostram uma veia artística bastante honrosa a este que já era um cineasta consagrado no Leste da Europa. Principalmente filmes como Salmo Vermelho (Még Kér A Nep, 1971) e Vermelhos e Brancos (Csillagosok, katonák, 1971), aparecendo como referências explícitas. Este ponto de contato entre os dois cineastas, quando Bertolucci já não era mais um mero estreante no cinema, rende as imagens mais poéticas de 1900. Este que acabaria por ficar nos 5 filmes mais famosos de Bertolucci, muito devido ao seu tema e grandiosidade, ainda que seus ares de épico atrapalhassem mais do que engrandecessem. Para quem tiver mais tempo e mais vontade, obviamente, sentar para assistir a esta obra rende uma bela tarde, e para os mais interessados, certo que rende um bom estudo de uma nação e por que não, da humanidade. Louco, cruel e louco século XX.
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