Acho que a melhor forma de crítica mora na representação e, quanto mais fiel for, melhor. Assim se cria "Sangue Negro", que vai às bases dos EUA contemporâneo, bases estas que se disfarçam sobre a égide de prosperidade através do dinheiro e unidade através da religião, mas que constituem, de fato, a primitiva busca do homem pelo poder (e, aqui, a crítica do filme pode se estender a vários outros locais e tempos que não os Estados Unidos do início do século XX).
Daniel Plainview (e esse nome não é à toa) é, antes de prospector e "pai", um homem numa busca incansável por poder, que é levada de forma pensada, trabalhada, comedida e não desvairada (como costuma acontecer a outros que enveredam por tal procura). E, nessa busca, ele leva a sério o duelo contra os concorrentes, sejam eles de empresas petrolíferas, sejam somente outros homens em busca de poder, como o pastor Eli Sunday. Afinal, não se trata de dinheiro ou óleo.
Como diria o ditado, "vale tudo no amor e na guerra". E, nessa guerra, vale explorar o filho dos outros (ao qual Daniel sequer nomeia, chamando-o apenas por H.W., o que só reflete o desprezo pelo menino) numa propaganda descarada que evoca os valores da família. Aqui mora outra crítica a um sistema tipicamente americano, o tradicional, que defende valores morais e familiares em discussões como, por exemplo, a legalização do casamento homossexual.
A propósito, acredito no menino como uma personificação da própria companhia de Daniel, afinal, os dois "nasceram" na mesma época (H.W. foi "adotado" quando o prospector descobriu seu primeiro poço de petróleo) e cresceram lado-a-lado. Isso justificaria o modo como ele ficou furioso quando o concorrente lhe disse como lidar com o menino (a empresa). H.W. também pode se constituir como a imagem de Daniel para a sociedade (o rostinho bonito). Assim, só poderia haver conflito quando o menino fica surdo (deixa de ouvir o "pai"), e, tempos depois, mudo, uma ironia para quem funcionava como elo de comunicação.
Do lado religioso, vale explorar a ignorância da massa, como faz o jovem Eli Sunday, em suas pregações, se dizendo um profeta, curandeiro, e agindo como tal. É possível até acreditar na inocência dele quando ele tenta extorquir dinheiro de Daniel para a reforma de sua igrejinha, e até mesmo quando ele tenta se promover com a benção de um poço de petróleo inaugural (e recebe um golpe poderoso do prospector, que mostra não estar lá de brincadeira). Inclusive na cena final, quando tudo que Eli quer é dinheiro para salvar sua igreja (com boas ou más intenções, quem sabe?) e Daniel recusa-se a dar (aqui o pessimismo de PTA alça o auge, com o dinheiro (materal) literalmente esmagando a fé - pela humilhação e com a pancada na cabeça). Apesar disso, sabe-se que o pastor é a personificação de toda religião que fora mais política que salvadora, não só a igreja protestante que se estabeleceu nos EUA, como também a famosa Igreja Católica.
A obra é de um pessimismo doloroso. Daniel detesta o homem e diz só conhecer o pior lado das pessoas, "mesmo antes de conhecê-las", o que é verdade. Ele é o único que sabe, expressamente, os verdadeiros intentos de Eli; ele é o único que vê o filho se revoltar e tentar queimá-lo vivo; ele é o único que vê o irmão se revelar num falso irmão. Daí a lidar com as pessoas ao seu modo, sozinho. Assim, carrega um peso enorme nas costas e considerar-se, ao final do filme, a Terceira Revelação (uma espécie de messias que enxerga as pessoas no seu interior e livra o mundo delas) não seria um exagero.
Plainview é, por diversos aspectos, um dos personagens mais profundos já concebidos no cinema. O veterano Daniel Day-Lewis consegue transpor o enorme desafio de compor o prospector (4 anos de preparação), mas é, sem dúvida, ajudado pela complexidade do caráter de Plainview. O que surpreende é, sem dúvida, a atuação de Paul Dano, que eu considero melhor que a de Daniel por ser mais constante durante o filme (diferentemente deste, que se revela de verdade no quarto final da obra).
A direção de Paul Thomas Anderson é deslumbrante. Arranca planos riquíssimos de um deserto aparentemente estéril, e cria metáforas chocantes, a mais emblemática, na minha opinião, o incêndio no poço de petróleo, quando o fogo sai literalmente da terra, uma espécie de "portal do inferno" aberto, com Daniel Plainview, em foco, atuando como o próprio diabo, não em pessoa, mas no que representa (a busca pelo poder).
Méritos técnicos não faltam: a trilha sonora está arrepiante, e lembra um pouco a de "O Iluminado" (no que concerne à tensão criada pela música pungente em planos longos); a fotografia é muito boa e abusa de contrastes (fogo no escuro, lagos de petróleo no meio do nada); e edição também acima do normal.
Através da construção de criaturas extremamente realistas em suas complexidades, postas num cenário de pura ebulição (econômica, social, ideológica), PTA nos faz pensar não só nos elementos que constituíram as bases dos EUA (e que, consequentemente, fazem parte até hoje), mas também nos alicerces do próprio homem, que não mede esforços para alcançar seus objetivos e mostra que "haverá sangue" na conquista de poder.
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