Esse é, sem dúvida, o Almodóvar mais sombrio de todos. Aqui, o diretor abandona quase que completamente o discurso melodramático que lhe consagrou e mergulha a fundo numa trama de abordagem mais psicológica que o normal, repleta de nuanças e chocante. Uma prova de que ele já é capaz de sair de sua zona de conforto e se arriscar em produções mais originais.
Talvez o aspecto mais intrigante de “A Pele que Habito” é a confusa identidade de gênero construída em cima do personagem Vicente/Vera (ironicamente, o rapaz também é um construtor de peles, no caso, estilista, e, quando transexualizado, passa a construir bonecos usando, como pele, trapos de roupas). Robert Ledgard, o responsável por tal manipulação, acredita, como todo bom materialista, que nós somos apenas a pele que habitamos. Assim, crê estar aplicando o castigo mais severo ao estuprador de sua filha: tão irreversível quanto a morte seria uma vida de vergonha e humilhação num corpo feminino como o desprezado por Vicente (vivido por um excelente Jan Cornet).
No entanto, a trama toma rumos inesperados ao deparar o espectador com o passado do Dr. Ledgard, atormentado não só pelo estupro (e depois suicídio) da filha, mas também pela morte da esposa. O que seria apenas uma missão de vingança torna-se uma busca pela ressurreição do amor perdido. Vicente ganha um rosto quase idêntico ao da falecida mulher do cirurgião e uma proteção extra contra queimaduras, uma pele altamente resistente. Robert chega a declarar para sua criação transexual que “ela nunca mais se queimará de novo”. Ali já havia ocorrido a mórbida transferência necrofílica de personalidade, tal qual no clássico de Hitchcock, “Um Corpo que Cai”.
O Dr. Ledgard, a essa altura, já havia esquecido todo o incidente que o motivara àquela louca saga, mas não Vicente. Esse ainda tinha um pouco de si vivo, uma “alma” que se sobrepunha à toda a matéria que ali habitava, por mais modificada e tangível (fato que desencadeou o final trágico). Assim, é possível dizer que a maior mensagem de Almodóvar é que não importa em que corpo estamos ou o quanto nós o modificamos, a nossa essência sempre permanecerá e se sobrepujará (mensagem que pode ser levada tanto como uma ode à alma humana e à beleza interior quanto uma pesada crítica ao contemporâneo exagero nas intervenções plásticas).
A direção de arte causa espanto: as cores de Almodóvar quase desapareceram, dando lugar a uma frieza praticamente cirúrgica, mas não por isso estéril (pelo contrário, é necessária para a imersão psicológica e a tensão voyeurista). A fotografia está impecável, a trilha sonora de Alberto Iglesias é uma das melhores da filmografia do espanhol e as atuações não deixam nada a desejar. Destaque também para o excelente roteiro e a direção sóbria. Através de “A Pele que Habito”, Pedro Almodóvar mostra ao mundo que é capaz de fugir do lugar-comum que lhe deu renome e, assim, se firma como um dos maiores cineastas da atualidade.
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