Há duas coisas que ser feitas ao e após assistir “Gosto de Cereja”: a primeira diz respeito à filmografia de Abbas Kiarostami, esse iraniano que não diz somente aquilo que parece dizer (em outras palavras, constrói delicadas analogias); a segunda é diz respeito ao espectador, que, não sendo uma pessoa de extrema e refinada sensibilidade, deve ver o filme duas ou, se possível, três vezes para melhor apreensão (de preferência, uma atrás da outra). Foi o que eu fiz.
O filme começa com um homem andando em seu carro pelas áridas paisagens de Teerã à procura de algo que não se sabe o que é. A simpatia com que trata alguns transeuntes (todos homens, não há uma mulher sequer nesse filme além de pouquíssimas figurantes, o que pode soar misógino) parece esconder segundas intenções, as quais o espectador, invariavelmente, trataria como sexuais, assim como o primeiro homem abordado tratou (ou pareceu tratar, pela agressividade demonstrada por ele). Essa parece ser a intenção do realizador, que, ao criar essa aura e desmanchá-la posteriormente, nos dá a ideia de que nem tudo o que parece ser, é. E essa é uma ideia importante para o acompanhamento de “Gosto de Cereja”.
Mais tarde, o homem se encontraria com um soldado. Continuamos nesse jogo de “busca sexual proibida” (pois o protagonista ainda não revelou a natureza do trabalho que deseja realizar) fato que condiz com a realidade dos homossexuais no Irã, onde tudo é feito sorrateiramente. Porém, como “nem tudo o que parece ser, é”, a ideia é pensar nesse soldado como uma alegoria ao exército em sua totalidade, não as armas em si, mas sim, prioritariamente, a disciplina e obediência quase cegas. A visão do exército segundo Abbas é bastante negativa: o soldado é um jovem cheio de espinhas, aparentemente inexperiente (como o exército), tímido (receoso) e que não demonstra ter muita instrução, chegando a ser tapado, dar respostas mecânicas, repetitivas e vagas (como o exército). Faz o que lhe mandam, de uma inocência que beira a estupidez.
É inevitável não sentir a tensão provocada pelo andamento do roteiro, com o protagonista levando o “ingênuo soldado” pro meio do nada, suas intenções em segredo. Então o personagem principal tem, por fim, seu nome revelado, assim como suas intenções (não coincidentemente, pois aquele indivíduo, antes incógnito, toma forma diante de seu objetivo). Após o Sr. Badii explicitar seu desejo, temos a visão de alguém preso de forma estrita às suas origens: o soldado se nega a realizar a tarefa de, em uma das possibilidades, ter de enterrar o contratante, dizendo que “não se lança terra em alguém”. Depois disso, o Sr. Badii dá a fatídica declaração de que “quando você lançar a terra lá dentro, o homem não estará vivo, ou não estaria naquele buraco”. O buraco não é necessariamente físico, ele pode muito bem ser emocional, onde o Sr. Badii se encontra, por assim dizer, morto, e só quer a misericórdia e decência de um enterro para terminar aquela agonia. Depois de muitas tentativas, o Sr. Badii desiste e volta para o carro, quando, então, o soldado, surpreendentemente, foge, correndo incansável pelo vale. Abbas vê o exército como covarde (além dos atributos já citados).
Após girar e girar em círculos pelo nada (literal e figurativamente, fato que se repete durante todo o filme), o carro do Sr. Badii cai, em parte, num buraco, e é tirado de lá por um grupo de trabalhadores amigos. Ele estranha o grupo e temos um indício do que pode ser a perturbação que o acompanha: ao longo de “Gosto de Cereja”, o Sr. Badii só procuraria, para ajudá-lo, homens aparentemente solitários, como ele, fato indicativo de que ele não queria apenas um coveiro (como disse antes ao soldado), mas alguém capaz de tirá-lo daquela situação de desespero, alguém que, como ele, fosse solitário, porém ainda possuísse alguma esperança. Ao ver todos aqueles homens simplórios unindo forças para retirar seu carro (ou ele) da fossa, o Sr. Badii encara algo que lhe parece distante, estranho ou até repulsivo: a união.
Numa conversa posterior com um segurança de equipamentos de escavação, o protagonista parece demonstrar uma estranha obsessão com a terra, dizendo que “a terra nos dá todas as coisas boas”. Isso poderia ser confirmado mais à frente, quando ele fica parado no meio de um canteiro de obras, admirado e totalmente exposto à poeira. Ao que parece, ele entende de cavação, pois menciona o assunto com o soldado. Depois de um diálogo sobre a guerra no Irã e no Afeganistão (que assume tons críticos), o Sr. Badii vai ao encontro do seminarista amigo do segurança. O seminarista é a religião, mais experiente que o exército, aparentemente (e só aparentemente) ingênuo e por vezes prolixo. Além disso, ainda possui tons de inércia e uma mecânica semelhante à do exército. Segundo Abbas, diante da dor humana, a compaixão é inútil, pois a dor, em si, não pode ser compartilhada por palavras (não pode ser entendida como disse o Sr. Badii). O diretor critica também a falta de praticidade da religião que, diante de um pedido de ajuda humanitária de um sofredor, é capaz, apenas de citar o Corão, a Bíblia e outros livros sagrados de forma totalmente ineficaz. Por fim, ataca a lógica dos dogmas religiosos, fazendo o seminarista se contradizer entre o pecado do suicídio e o pecado de machucar as pessoas que se ama e levando-o a considerar o suicídio como uma alternativa, em termos, válida.
Por fim, temos o terceiro homem, um taxidermista, que representa a ciência. É de uma praticidade que chega a ser desconcertante, e sem deixar de demonstrar compaixão com os problemas alheios. Aparenta, também, sabedoria, tentando ajudar o Sr. Badii através de frases simples e uma história também simples, porém profunda. Isso sem falar do conto sobre o turco e o médico, cujo propósito é a mudança de perspectiva do doente. A ciência, sob a égide do médico e do taxidermista, está a agir na tentativa de mudança de pontos de vista. A ciência busca, de toda forma, a preservação do homem e o homem, por sua vez, não tem argumentos contra a ciência, se vendo, assim, calado e, no final, depositando suas esperanças nela (como quando o Sr. Badii pede para que o taxidermista arremesse pedras contra ele e o sacuda, na esperança dele estar vivo). À medida em que o taxidermista fala, a paisagem muda, sendo composta por mais verde (o que alude a esse aumento da esperança). O desfecho do filme, uma sequência de índices muito vagos (como o jogo de sombras na casa do protagonista e a misteriosa ida de taxi ao local do enterro), permite diversas interpretações acerca do resultado dessa épica saga do Sr. Badii. O final feliz é indicado pelas cenas das filmagens do que aparecem logo depois, onde, numa paisagem indiscutivelmente mais verde, vemos amigos confraternizando entre si e soldados colhendo flores. É possível dizer que o Sr. Badii encontrou a paz que tanto buscava, talvez na vida, talvez na morte.
A direção de Abbas Kiarostami é indiscutivelmente brilhante, abusando de planos gerais grandes, que só reforçam a pequenez do homem diante do mundo. A fotografia é belíssima e o trabalho de edição (também de Abbas) beira a perfeição. Interessante também é o modo como certos ruídos se sobressaem aos diálogos dos atores, fato que, aliado às atuações extremamente espontâneas, contribuem para uma naturalidade louvável do filme, o que facilita o trabalho da diegese.
O Sr. Badii era um homem destruído, em algum aspecto, de uma forma que já se considerava morto. Cavou a própria sepultura e, em nome do resto de dignidade humana que possuía, estava atrás de um enterro digno, mas não sem tentar, uma última vez, um apelo às três instituições mais sólidas da humanidade: o exército, a religião e a ciência. O fato da razão pela qual o Sr. Badii queria tentar o suicídio nunca ser revelada denota uma objetividade no olhar do espectador sobre a obra, pois não se quer aqui discutir o mérito do suicídio ser válido ou não em determinada situação, quer-se discutir o ato em si. Assim, é possível dizer que “Gosto de Cereja” não é só um retrato melancólico da solidão ou realista/confrontante do suicídio, mas, acima de tudo, é a visão kiarostamiana dos organismos sociais responsáveis pela “salvação da humanidade” (em seus defeitos e qualidades, aqui simplificados em organismos literalmente vivos) em conflito com a forma derradeira do existencialismo humano.
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