O que seria uma arte original? Ela ainda existe diante do contexto contemporâneo de reprodução? Teria a arte original menos validade que uma réplica sua, no mundo em que vivemos? Seria o falsário menos talentoso que o artista responsável pela obra “original”?
Essas perguntas dividem opiniões entre estudiosos há anos e iniciam a trama de “Cópia Fiel”. Vale dizer que esse fato é de extrema importância para o entendimento pleno do filme. Abbas Kiarostami, talvez o maior diretor iraniano de seu tempo, faz dessa discussão as raízes de sua história por duas razões principais: a primeira é que seu filme se trata da releitura de um filme de Roberto Rosselini, “Viagem pela Itália”, por isso não seria o “original”; a segunda aborda o próprio contexto da linguagem cinematográfica, que nada mais é do que uma reprodução, uma cópia (fiel?) do que realmente acontece. Teria o filme menos validade por ser baseado em outra história, uma cópia de uma cópia (uma vez que “Viagem pela Itália” também seria uma cópia simplesmente por ser um filme)?
Todas essas discussões polvilham a cabeça do espectador em menos de dez minutos e, como se já não fosse muito, Abbas ainda leva a discussão além: o que é real e o que é falso dentro da vida de um casal? Um tem menos validade que o outro? A alegoria é criada em cima da história de Elle e James, dois desconhecidos que, devido a um mal entendido, passam a se tratar como marido e mulher.
Há duas hipóteses acerca do que acontece:
Elle e James não se conhecem (afinal, James dá um autógrafo a Elle no início do filme como quem dá a uma fã desconhecida). Ela entra em contato para sair com ele, os dois passeiam por um tempo juntos, param em um café e, quando James vai atender o celular do lado de fora do estabelecimento, a dona trata Elle como esposa dele. Elle não desmente e segue com a “farsa”, que fica mais e mais convincente, a ponto de convencer (e confundir) até o espectador, que acredita que eles foram, de fato, casados e estão em crise. Aí, Abbas consegue um ponto, fazendo-nos repensar acerca da validade do falso, afinal, que importa se é falso se consegue nos convencer da verdade a que se propõe? No entanto, seguindo a lógica da farsa sem cair na ilusão, ali, Elle e James descontam todas as suas frustrações em projeções de outras pessoas que os feriram. James pode muito bem representar um companheiro ausente de Elle e Elle pode ser uma mulher possessiva de James. São os papéis da vida.
A segunda hipótese seria a de que Elle e James já se conheciam, mas fingiam, durante a ausência dele, não se conhecer. Essa teoria se sustenta em alguns detalhes: James e Elle possuem momentos de intimidade e discussões típicas de um casal, mesmo antes da “encenação” começar; James diz não compreender nada de italiano (na cena do museu, quando o guia turístico explica uma das obras), mas fala fluentemente com um garçom no restaurante em uma das cenas finais do filme; e Julien (filho de Elle) diz que seu sobrenome não foi posto na dedicatória do livro que James assinou (portanto Elle queria evitar alguma ligação do filho com o suposto pai). Diante da confusão criada pela dona do café, os dois decidem acabar com a farsa e retomar as discussões de antes, vulgo “lavar a roupa suja”.
Seria a ambiguidade proposital? Uma forma de Abbas nos dizer que não importa se a obra é falsa ou verdadeira, se o que se passa lá é fingimento ou real, desde que cumpra sua função? Seja com for, essa ambiguidade domina toda a história e o mais fascinante é que ela não se confunde: certa hora, James pergunta se foi um marido/pai ausente, como quem quer ouvir a verdade da boca da companheira, mas, ao mesmo tempo, como quem quer confirmar que tipo de personagem deve ser interpretado; ele também parece não lembrar onde passou a noite de núpcias (não lembra por ser, de fato, um marido ausente, ou por essa noite nunca ter existido?); Elle diz que “gosta do modo como ela apóia a cabeça nele” (na cena não está claro se ela faz referência à estátua ou à personagem criada por ela).
Abbas não abandona o discurso pró-mulheres (massacradas no Irã, como todos sabem), e aqui ele ganha tons extremamente sutis: o discurso da dona do café sobre “ter um marido é o que importa, não importa se ele é bom ou ruim” é praticamente uma recriação do discurso usado no Irã (lá o importante é casar-se, mesmo que com um brutamontes xiita); Elle diz, diante da estátua, que o homem lá foi imortalizado porque sua única responsabilidade era cuidar da mulher em seus braços (um chamamento aos homens que trabalham demais e esquecem de suas esposas); o senhor da piazza diz a James que a receita para a felicidade do casal era simples, que Elle só queria que ele pusesse a mão no ombro dela (a quantas mulheres iranianas são negados afetos tão simples quanto este?); e, partindo da hipótese que o casamento é uma farsa (seriam todos os casamentos uma farsa?), vemos esta farsa sendo conduzida pela mulher, que ali detém o poder, mas mesmo assim se submete a algumas coisas. Aliás, o próprio nome da personagem principal é uma ironia, afinal, Elle é “ela” em francês, ou seja, ocorre aí uma generalização feminina gritante e apropriada.
Como se pode ver, em uma hora e quarenta e dois minutos de filme não há praticamente nenhuma cena dispensável. O filme é seco, enxuto e isso se reflete em diversos aspectos, como na trilha sonora, que inexiste (a não ser pelas duas músicas de casamento tocadas em locação). Tudo é aproveitado, até a língua é usada para criar conflitos e marcar momentos de transição psicológica dentro do filme (como quando os dois começam a “encenar”, deixando o inglês de lado e usando o francês). E méritos técnicos não faltam: a direção é segura, sem exageros e livre; a fotografia é brilhante, não menos do que se esperaria de um filme rodado na Itália; a atuação de William Shimell é muito boa, mas ofuscada pela interpretação magistral de Juliette Binoche, que levou o merecido prêmio de Melhor Atriz do Festival de Cannes de 2010. Ali, Juliette teve de lidar com uma gama de emoções enorme e ainda fez malabarismos entre três línguas diferentes (de uma fluência quase nativa, diga-se de passagem), se saindo tão natural que surpreende.
Abbas faz seus personagens falarem por ele quando defende a reprodutibilidade da arte a partir do valor emocional agregado a ela (quando Elle questiona esse mesmo valor em detrimento ao valor técnico, numa discussão com James). Afinal, que importa se aquela arte é a original ou uma cópia se ela causa o mesmo impacto na pessoa que a observa? O diretor é pretensioso sim, mas cabe ao espectador dizer se ele está certo ou não, tanto a respeito de seu filme, “Cópia Fiel”, quanto a respeito da arte em geral. E essa é uma discussão que durará bastante tempo.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário