Na real, O Dorminhoco é uma “comédia pastelão”. Acontece que, por algumas (várias) sacadas de Woody Allen, acredito que é, também, uma daquelas “comédias morais”, que Renoir inaugurou e Woody Allen, assim como outros diretores estadunidenses, desenvolvem em vários filmes.
O filme é a história de Miles Monroe (interpretado pelo próprio Woody Allen, tal como Chaplin fazia), personagem que, quando descrito por si mesmo durante o filme, era um simples violinista, morador de Greenwich Village, dono de um restaurante de comida natural qualquer, que nunca fez mal a ninguém (segundo ele, “às vezes um cliente pegava botulismo, mas isso era raro”.. rs).
Miles tem o corpo congelado em 1973 e, dorminhoco, só é acordado 200 anos depois, por cientistas de uma sociedade futurista. Começa aí a paródia aos filmes de ficção científica, com cenários milimetricamente limpos, brancos e pouco povoados (aquela vibe “clean”, típica de laboratórios e naves espaciais futuristas, 2001 - Uma Odisseia no Espaço que o diga).
Como já é de se esperar, Allen satiriza as maiores besteiras, começando quando o Miles, depois de acordado pede comidas como uma barrinha de cereal com gérmen de trigo e proteína, diante do que os cientistas ficam assustados, mas depois entendem: é que na época dele achava-se que aquilo era saudável.
Achei muito bom. Em tempos em que ora óleo de côco é saudável, ora é vilão; ora um inofensivo suco verde é a salvação de todos os males, ora é melhor parar com isso; ironizar um pouco parece bem atual (ou futurista?).
Bom, eu geralmente acho Woody Allen engraçado e nesse filme achei que isso se manteve (até porque os personagens que ele interpreta nas comédias são geralmente uma transposição dele mesmo, não há uma preocupação em interpretar propriamente, em sair de si, mas apenas em participar dos próprios filmes, divertir, o que praticamente garante que as comédias dele em que ele mesmo atua tenham sempre seu humor, e eu considero isso um ponto positivo).
São tiradas como “Me congelem de novo. Quando não durmo por 600 anos fico de mau humor”, na cena em que ele percebe que agora terá que viver em uma sociedade louca que adora um certo Líder tirano e promove a “reprogramação” do cérebro de alguns cidadãos.
O desespero de Miles ao se ver sozinho em 2173 é bem cômico, principalmente porque ele começa a dizer coisas que não se consegue definir se é só o jeito irônico do personagem ou se a ideia era fazer ele bobo daquele jeito mesmo. Tem disso quando o cientista informa pra ele que todos os seus amigos morreram há 200 anos e ele responde: “Mas todos comiam arroz integral”.
Woody Allen aproveita pra dar uma alfinetada histórica. Como ocorreu uma guerra nesse longo meio-tempo de 200 anos, Miles acaba sendo o único sobrevivente capacitado a falar sobre como era no seu tempo, os personagens históricos do século etc. O que ele testemunhar ali, com certeza, será muito importante pras conclusões que a sociedade do futuro vai tirar sobre a História.
Pois é, questionado sobre Charles de Gaulle, Miles diz que era um famoso cozinheiro francês que fazia ótimas omeletes.
Nessa nova sociedade, funcionários para serviços domésticos são robôs.
Na cena de uma festa na casa de artistas do futuro, um dos convidados aparece com uma estampa enorme com a suástica na roupa, o que sugere o caráter nazista daquele povo.
A dona da festa é Luna (interpretada por Diane Keaton, que depois irá fazer “Noivo neurótico, noiva nervosa” com Woody Allen), uma poeta um tanto superficial que, diante da pintura de um colega, se resume a opinar: “É divino! É divino! Não, mais que divino: é esplêndido!”.
Parece que, por via transversa, Woody critica as pretensas “críticas de arte” resumidas em um adjetivo. Já existiam em 73, continuam em 2015 e, ao que a piada indica, perseguirão até 2173.
Fala-se ainda de um movimento de resistência a esse sistema, movimento intitulado de A Resistência, quanto ao qual Luna não tem interesse algum. Claro, seu cérebro foi completamente “reprogramado” pro sistema atual.
Em mais uma pequena paródia à pretensa arte, o companheiro de Luna intercala: “É difícil entender os criminosos. Somos artistas. Só reagimos à beleza.”.
Bom, nessa sociedade, em que existe uma máquina chamada Orgasmotron e as pessoas se convidam com a gentil pergunta: "Quer praticar o ato sexual?", a conclusão é a de que relacionamentos entre homens e mulheres não duram (foi provado pela ciência que existe uma substância química em seus corpos, que faz com que eles se irritem uns com os outros).
O que há de piada e o que há de sério nesse filme de 40 anos atrás sobre uma sociedade pra daqui a 160 anos?
Que belo texto. Até eu, que não sou dos maiores fãs de Allen gosto deste aqui.