"A alegoria da desconstrução"
Quando A Vila chegou as cinemas em meados de 2004, M. Night Shyamalan desfrutava de um liberdade artística invejável em Hollywood. Com uma carreira promissora até aquele ponto, o cineasta indiano alcançou o status de gênio, chegando a ser comparado a nomes como Steven Spielberg e Alfred Hitchcock. A precipitação inicial exagerada daria lugar a um ódio injustificável na mesma proporção com o tempo.
A sinopse do filme trata de um grupo de aldeões que vivem isolados num vilarejo auto-sustentável em meio a uma floresta no final do século XIX, longe da violência das cidades, onde mantém um pacto de paz com estranhas criaturas para que um não invada o território do outro. A partir desta simples premissa (com influência do roteiro original de King Kong e O Morro dos Ventos Uivantes, como declarou o cineasta), Shyamalan constrói um dos maiores retratos da sociedade contemporânea, analisando fatos como a paranoia instaurada nos EUA pós-11/09 e seu efeito sob seus cidadãos, por exemplo.
É interessante notar os muitos simbolismos da obra. O uso de cores por exemplo, com o vermelho representando a violência e o amarelo a passividade, num contraste que permeia toda a projeção. O trio principal, composto por Lucius Hunt (Joaquim Phoenix), Ivy Walker (Bryce Dallas Howard) e Noah Percy (Adrien Brody) representam a razão, a emoção e a violência, respectivamente. É com eles que a trama se desenrola e a mensagem de Shyamalan se revela.
Os habitantes da vila são criados como crianças, longe da violência e da maldade do mundo exterior, num estado de ignorância e inocência, sem espaço para o senso crítico, e para que esta situação se mantenha, não é permitido o contato com "aqueles de quem não falamos", que simbolizam o povo estrangeiro, que ameaçam a paz local quando invadidos. A farsa é o principal instrumento utilizado por aqueles que comandam o local, justificada como um mal necessário para um bem maior.
Mais do que um filme de terror e suspense, A Vila é, em essência, um filme sobre o amor, em seu estado mais puro e pleno. E a beleza da obra impressiona em vários sentidos. Seja na fotografia naturalista de Roger Deakins, na trilha sonora divina de James Newton Howard ou na sensível direção de Shyamalan, que entrega alguns dos melhores momentos do cinema nos últimos anos.
A partir de uma inteligente montagem, A Vila desconstrói também o gênero ao qual pertence, com uma reviravolta final em etapas, onde revela o segredo antes do clímax, subverte-o, para só depois entregar a revelação-chave da trama, coisa de gênio. A transformação pela qual Ivy e o espectador passam neste processo é notável, onde a ignorância é deixada para trás para dar lugar a razão e uma visão mais ampla das coisas.
Com a ousadia e o tom filosófico do projeto, A Vila não repetiu o sucesso das produções anteriores do cineasta, embora a campanha de marketing apelativa tenha garantido a atenção do público, que mesmo não gostando do resultado, lotou as salas de cinema (infelizmente pelos motivos errados, novamente). A partir daqui o cineasta investiria em produções experimentais, polêmicas e autorais, que o tornariam uma das personalidades mais odiadas do mundo do entretenimento (pelo menos por aqueles que nunca o apreciaram de fato).
A Vila é até hoje a melhor direção de Shyamalan, mostrando um amadurecimento exemplar desde Sinais, comandando uma das obras mais originais, belas e envolventes do cinema atual. Com tomadas milimetricamente calculadas e uma experiência áudio-visual que manipula as emoções do público com a inteligência de um cineasta em plena forma, A Vila é um prazeroso exercício de suspense para aqueles que sabem como apreciá-lo.
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