João do Brasil
A geração de pessoas que estão hoje na faixa dos trinta anos majoritariamente, ficou meio órfã com o desaparecimento de uma das bandas que marcou essa mesma geração. Com a diminuição do peso dos Titãs, e os Paralamas do Sucesso cada vez mais pop romântico, as letras inspiradoras ficaram em um passado distante, arraigado às letras da Legião Urbana. Pasmem, eu não ouvia a banda quando ela ainda estava na ativa, tinha uma certa birra, estava em outra, ouvindo coisas estruturalmente mais elaboradas. Mas não pude deixar de notar a comoção naquele outubro de 1996 com a morte de Renato Russo. Os adolescentes se juntaram, fizeram vigílias, guardando como se fossem objetos de ouro os cassetes gravados no “3x1” com as músicas que tocavam na rádio. As rodas de violão, por meses, tiveram um só tema: Legião Urbana. Pensei comigo: “alguma coisa de interessante deve ter essa banda pra levar tanta gente ao delírio.
Hoje em dia, mais vacinado, acredito que o que é bom é, quase cem por cento das vezes, inversamente proporcional ao sucesso, salvo raras exceções, e a Legião Urbana é uma delas. E os órfãos podem, este ano, tornarem-se um pouco menos órfãos. Dois filmes que tem alguma relação com a banda estrearam nos cinemas nacionais. O primeiro, Somos tão Jovens, conta a história do vocalista Renato Russo jovem e tudo o que precede a formação da Legião. Feito para fãs e um pouco pastelão, o filme ao menos agradou pela grande atuação de Thiago Mendonça, cuja semelhança com Renato Russo em alguns momentos chega a ser assustadora.
O segundo filme é Faroeste Caboclo, canção que narra as desventuras de João de Santo Cristo, homem de família pobre e que teve que se virar cedo na vida. Entre tantas canções era essa, juntamente com Eduardo e Mônica, que gostaríamos de ver nos cinemas, pois ambas eram um gênero misto, letra de música com narrativa, as duas quase que como epopéias, a primeira do brasileiro comum, a segunda, do amor puro.
Pois bem, Faroeste Caboclo, o filme, se fosse um aluno, passaria de ano sem exame. Dedicado, com um roteiro simples, um bom “feijão com arroz” que não se arrisca a fazer o que não sabe. Consegue cortar trechos mal resolvidos da música e incluir elementos e cenas interessantes nas brechas que a canção deixou. Nesses momentos alça vôos ousados.
Entre as atuações, Fabrício Boliveira, que interpreta João de Santo Cristo está irrepreensível. Está tão bem que ofusca seu par, Maria Lúcia, interpretada pela atriz Ísis de Oliveira, que, apesar de não ser um desastre, fica aquém do companheiro. Aí está um dos pontos negativos do filme, o casal não engrena, as coisas acontecem rápidas demais. Apesar da sua aparente desilusão com a vida, Maria Lúcia se deixa muito facilmente conquistar por João de Santo Cristo. Ela que era estudante de arquitetura e filha de um senador, com cara limpinha e jeitinho de boa moça, apesar de freqüentar algumas rockonhas. Dentro do contexto de época, não seria tão fácil uma moça como ela se apaixonar por um possível bandido, que, fugindo da polícia, se esconde em seu quarto.
Outra atuação que está aquém é a de Felipe Abib como Jeremias, que está mais para o Valdívia, jogador do Palmeiras do que para um traficante de renome. É quase clownesco, e se borra de medo se escondendo em sua mansão e atrás do policial Marco Aurélio, bem interpretado por Antonio Calloni.
A construção do cenário brasiliense no início dos anos 1980 também é positivo (assim como no filme Somos Tão Jovens), e os diálogos não são forçados para que apareçam trechos da música, como acontece no filme sobre a vida de Renato.
Acredito que na letra da Legião Urbana, apesar de João ter virado santo no final, ele é construído, apesar de ter sofrido muito, como uma pessoa normal, comete acertos e erros, alguns deles em retaliação, outros por erro mesmo. João está no meio termo entre santo e demônio. Ele se apaixona e para de traficar, mas rouba. No filme, com tantos sofrimentos aos quais João é obrigado a passar, seu caráter de santo é acentuado, praticamente o redimindo de todos os pecados, assim como Severino de Aracajú, em O Auto da Compadecida, seu ódio e seus erros nada mais são do que fruto do meio. Nesse sentido, acredito que a letra ainda colabora menos com a mistificação da personagem.
Entretanto, o filme é bem dirigido, a ambientação está impecável, o roteiro está bom e as atuações, em suma, muito boas. Quem não conhece a música consegue acompanhar o filme sem muitos problemas. A história funciona na telona, e caminha sozinha sem depender do texto fonte. Faroeste Caboclo passa no teste e escreve um bom capítulo no cinema nacional.
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