Levantando questões de cunho psicológico, social e político, Kubrick cria sua obra máxima
O texto contém spoilers, ou seja, revela detalhes sobre a trama. Se não assistiu ao filme, leia por sua conta e risco.
Tal como ouvir a 9ª Sinfonía de Beethoven é assistir a Laranja Mecânica: fica a sensação de estar diante de uma das maiores obras de sua respectiva arte. E é ao som da mais bela música clássica e com uma atuação impecável de Malcolm McDowell que Stanley Kubrick nos conta a história de Alex DeLarge, um jovem delinquente que vive em uma Inglaterra futurista, onde a língua falada é uma mistura de inglês, russo e gírias londrinas, e com ela aprendemos novas palavras e expressões, como droog (amigo), horrorshow (incrível), moloko (leite), in-out-in-out (sexo), entre outras.
Anthony Burgess, o autor do livro homônimo em que o filme foi baseado, é o inventor dessa linguagem. Mas uma das palavras que mais tem destaque no filme já existia antes mesmo de sua obra. Ultraviolência é a palavra. Essa violência superior a convencional nos é apresentada não apenas na forma física, que pode ser facilmente reconhecida nos atos de Alex DeLarge e seus droogs, mas também em sua forma psicológica, onde podem ser levantados muitos questionamentos a cerca da complexidade do protagonista e da sociedade distópica – que cada vez mais parece mais real – onde se passa o filme.
Alex tira sua diversão de qualquer ato em que ele possa aplicar toda a sua agressividade, sem se importar com as leis que mantêm a ordem social ou demonstrar qualquer sentimento humanitário. Ele se diverte livremente durante toda a primeira parte do filme, até que é traído por seus droogs e, então, preso. Na prisão, vemos nosso "humilde narrador" (o filme conta com uma narração em off do próprio protagonista, e é assim que ele se descreve) se tornar adepto da Bíblia, e mesmo quando ele parece estar em plena paz lendo as passagens do livro, sua mente na verdade está imersa nos mais bestiais pensamentos, como na polêmica cena onde ele se imagina flagelando Cristo no caminho da crucificação.
Violenta e agressiva, essa é a natureza de Alex. Podemos ver isso da primeira à última imagem, em seu olhar intimidador que abre o filme à cena final com seu devaneio carnal ao atestar que está curado. Essa natureza é intrínseca a personalidade do personagem, logo não pode ser mudada, o próprio padre diz isso: “a bondade vem de dentro”, mas é exatamente o que o Tratamento Ludovico tenta fazer. Um método que busca acabar com o instinto violento de criminosos como Alex. Para isso, o paciente é submetido ao uso de drogas em fase de teste e posteriormente obrigado a assistir sessões de filmes que retratam a violência em várias formas possíveis. Nessas sessões o paciente fica impossibilitado de fechar os olhos e tem que continuar assistindo ao filme até que sinta um grande desconforto, enjôo e, por fim, desmaia.
O que o método faz não é acabar com o instinto violento do paciente, mas fazê-lo associar qualquer ato de agressividade a terrível sensação sentida no tratamento, assim ele fica impelido de agir violentamente, mesmo que seja para autodefesa. Até a 9ª Sinfonía de Beethoven e o sexo lhe causam esse desconforto – as alusões à sexualidade são várias durante o filme, basta reparar na quantidade de objetos em forma fálica que são mostrados. “Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser homem”, o padre havia alertado sobre o preço da liberdade que Alex queria, e é na segunda metade do filme que ele sofre com ela.
Nosso protagonista ganha a tão sonha da liberdade, mas então vê os atos que praticou no passado se voltarem contra ele através de suas antigas vítimas. Os personagens da primeira parte do filme agridem nosso protagonista de diversas formas, e Kubrick nos faz refletir: não seria a personalidade de Alex apenas um reflexo da sociedade em que vive? Após a tentativa de suicídio do personagem e a reversão do Tratamento Ludovico, o diretor ainda mostra para o público que, por mais desprezíveis que sejam as atitudes de um indivíduo perante a sociedade, não podemos mudar seu inconsciente e lhe tirar o direito de escolha.
Como se fosse pouco ter abordado todos esses assuntos citadas no texto, Kubrick ainda faz uma crítica política, sempre deixando claro que por trás do Tratamento Ludovico há o interesse de pessoas que pouco se importam com o real resultado desse método e muito menos com o que as cobaias são submetidas, querendo apenas algo para apresentar como o milagre que irá acabar com a criminalidade, para assim garantirem seu poder político. Essa é a essência de Laranja Mecânica, um filme crítico, com mensagens atemporais, que levanta questões de cunho psicológico, social e político, se tornando assim a obra máxima de Stanley Kubrick.
Abusando, propositalmente, das imagens impactantes, Kubrick lançou o seguinte dilema: o que é mais prejudicial ou pernicioso, a violência excessiva e nauseante praticada pelo jovem deliquente e sua gangue de drogados ou a violência camuflada e institucionalizada do Estado, que substitui a mais absoluta liberdade individual (inclusive a de cometer crimes) em completa repressão, transformando-o numa "laranja mecânica". Como voçê bem frisa o Tratamento Ludovico resta fracassado, de modo que o diretor não teve o menor pudor em expressar sua opinião diante do dilema antes proposto. Talvez, por este motivo, tenha sofrido, à época do lançamento do filme, várias ameaças. A questão a ser elucidada, no entanto, é se a reversão do tratamento faz com que Alex volte a ser o mesmo delinquente do início ou se ele, finalmente, se torna um adulto civilizado, com seus instintos de destruição e sexuais domados ? A crítica, até hoje, é dividida e eu, sinceramente, não tenho uma opinião final. E voçê ?