Da cruel realidade exposta por Alain Resnais em Noite e Neblina ao humor descomedido de Roberto Benigni em A Vida é Bela, filmes sobre o Holocausto existem aos montes, mas tentar lembrar apenas cinco sobre a escravidão já não é uma tarefa fácil. Isso porque o assunto ainda é de difícil debate, principalmente nos EUA, o que faz com que o tema seja evitado pela indústria cinematográfica. Então, ao menos em relação ao cinema, não é nenhum exagero dizer que 12 Anos de Escravidão é um marco na questão racial, por tentar saldar uma dívida que Hollywood tem para com quatro séculos de história.
Um dos exemplos mais recentes e conhecidos de filmes sobre a escravidão é Django Livre. Mas se no filme de Quentin Tarantino a brutalidade sofrida pelos escravos fica em segundo plano em meio ao humor e ao cinema de exageros de seu diretor, Steve McQueen faz questão de deixá-la evidente, sem poupar o espectador. No universo criado pelo diretor britânico, onde imagens contemplativas e longos silêncios se mesclam com intensas cenas de tortura, não há nada para achar engraçado, e sim, cruel e impetuoso. Até seria menos cruel se a história de Solomon fosse apenas ficção, assim como é a de Django, e não a representação da vida de um homem, que poderia ser a de qualquer outro negro durante o período da escravidão.
O filme é baseado na autografia de Solomon Northup, negro nascido livre que se apresentava como violinista em Washington quando é sequestrado e vendido como escravo para uma plantation na Louisiana. A partir daí, acompanhamos os mais diversos tipos de tortura e humilhação que ele e seus companheiros de senzala sofreram durante sua dúzia de anos como escravo. Aprendemos junto ao protagonista que a submissão é requisito básico para a sobrevivência e que não existem senhores de escravos bonzinhos, e sim homens como o sádico Edwin Epps (Michael Fassbender, em grande atuação) com seu olhar de ódio e indiferença que contrasta ao olhar de medo e sofrimento de negros como Patsey (Lupita Nyong'o, belíssima em cena), que já não vê mais esperança de ser livre e preferia morrer a ser novamente violentada por seu dono. Vemos também o olhar de Solomon, que se alterna durante todo o filme, da felicidade diante de sua família à dor diante das chibatas, mostrando que não é à toa que Chwetel Ejiofo é um dos favoritos ao Oscar.
O que diferencia o filme de McQueen de qualquer outro que aborda o mesmo tema é o fato de mostrar algo que já conhecemos de uma forma que nunca vimos. Todos sabemos como foi a escravidão e o sofrimento do negro durante esses 400 anos, mas nunca havíamos visto isso da maneira que 12 Anos de Escravidão nos mostrou, sem romantizar e tentar mascarar cenas que fazem parte do público querer virar o rosto. O diretor quase nos faz sentir o verdadeiro peso da chibata e vemos pela primeira vez o real e brutal impacto que ela exerce sobre as costas nuas de alguém que foi amarrado a um tronco por uma pessoa que se julga dona de seu próprio semelhante, somente pela cor de sua pele ser diferente.
12 Anos de Escravidão faz com que as marcas das chibatadas nas costas dos escravos perdurem na mente do espectador, onde, mais de cem anos depois delas terem deixado de existir, a questão racial ainda está longe de ser resolvida. Não é preciso ir além do cinema para perceber isso, ou seria apenas coincidência que, somente após 86 edições da premiação, Steve McQueen possa ser o primeiro negro a ganhar o Oscar de Melhor Diretor?
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