Existem milhões de coisas que me surpreendem em um filme, mas sem dúvida, a maior delas diz respeito a coisas que estiveram o tempo todo a um palmo do meu nariz e mesmo assim não pude percebê-las. "Felizes Juntos" impressiona ainda mais por este fator por ser a conclusão quase sólida e pura de um filme físico, aqui a metáfora brinca na superfície plástica da fotografia e o resto todo, todo seu recheio, está no visível ou no percebível através do apuramento da atenção.
O jogo de mudanças: Ho-Po Wing espera o novo ou uma transformação toda vez que pretende recomeçar com Lai Yiu-Fai, a viagem e as cataratas não são símbolos, mas a concreção projetada dessa aspiração inconstante à mudanças.
O outro jogo de mudanças: os desejos volúveis de Ho Po-Wing refletem na sua relação tumultuosa com Lai Yiu-Fai, é aqui que a metáfora estílica da fotografia tem lugar: a melancolia do preto e branco não é profunda, contudo, de cores apagadas (o deslocamento social dos protagonistas e a distância angustiosa entre eles acompanha esses frames, a cena em que o carro de Ho-Po Wing se afasta do bar ao som de Frank Zappa é um ótimo intento concernente dessa distância); o brilho aconchegante das luzes amareladas e das cores saturadas contorna a aproximação entre os principais, não menos preenchida de constantes altos e baixos emocionais (Lai Yiu-Fai esconder o passaporte de Ho Po-Wing é a tendência justificável de sua insegurança em meio a um caos incerto de felicidade).
- Não tenho certeza do que estão falando, mas estão brigando.
A atenção mediadora: Chang é o terceiro protagonista e o que aparece quando o filme já está a 40 minutos rodando, quase no meio, mais próximo de uma parte do que da outra, mais próximo de Lai Yiu-Fai: depois que a relação entre os dois protagonistas sucumbe ao desastre, Chang é a mediação que irá reconfortar Lai Yiu-Fai da melancolia (a terceira e mais curta projeção de fotografia estilizada do filme aparece aos 59 minutos e meio em apenas uma cena, a que orienta Lai Yiu-Fai na transição de emoção após o fim de uma relação nunca verdadeiramente decidida, ele debruçado no convés de uma balsa e o espectador suspeitado pela falta do filtro intenso e colorido presente nas cenas anteriores), Chang é a denotação explícita da atenção e um lugar novo e quase indeterminado na vida de seu colega de trabalho Lai Yiu-Fai (em torno de 1 hora e 2 minutos de sequência de filme, após saírem para beber, Lai Yiu-Fai é carregado até a cama por Chang, numa jogada de segundos, Chang havia deixado sua mochila num dos locais onde Lai Yiu-Fai dormia na época que Ho Po-Wing estava machucado, agora é Chang quem cuida de Lai).
- Você pode fingir estar feliz, mas sua voz revela a verdade. Se ouvir com atenção descobrirá. Assim como sua voz agora me diz que você não está feliz.
O colorido já voltou à tela há algum tempo; agora, em um lugar chamado "Cantina 3 Amigos", Chang oferece um brinde à amizade e festeja os últimos momentos ao lado de Lai Yiu-Fai antes de partir em viagem para Ushuaia, sem fotos, Chang prefere levar uma gravação em áudio da voz do amigo...
- Ela é bem bonita.
- Então por que não sai com ela?
- Não gosto da voz dela...Eu gosto de voz de mulher profunda e grave. Bem, na verdade depende. O que quero dizer é que gosto de vozes que fazem meu coração bater mais forte.
Talvez Chang não pôde escutar ao todo a solidão do amigo, a própria fita da gravação de áudio é coberta de ruídos ininteligíveis do choro de Lai Yiu-Fai (no abraço de despedida, Lai é quem fecha os olhos e Chang, o atento ouvinte, é quem agora os abre).
Será que era porque tínhamos ficados próximos? Quando o abracei, tudo que podia ouvir era meu próprio coração batendo. Será que ele também ouviu?
Os olhos fechados de Lai o levam agora para uma compreensão mais atenta da vida, enquanto Ho Po-Wing vaga errante, Lai mesmo na solidão resolve contornar seus problemas: a vida que se redireciona de volta a Hong Kong e que termina o que veio buscar na Argentina (Lai enfrenta um emprego noturno num matadouro como quem busca voltar ao horário de costume do lugar de onde veio e como quem tenta afastar o passado com Po-Wing; a cena onde Lai lava o sangue de uma calçada tentando escapar das lembranças das palavras de Po-Wing é o seu maior objeto de libertação) Mesmo? As Cataratas do Iguaçu se tornam a memória de encontro entre Lai e Po-Wing, mesmo separados, Lai resolve fazer jus à memória em seu último momento na Argentina as visitando, Po-Wing vive a melancolia dessa mesma memória (o ponto de encontro deles é o ponto de encontro de duas cenas, Po-Wing chora sobre o cobertor de Lai, Lai sente a imensidão das gotas da queda d'água sobre seu rosto).
Através de um mundo de ponta-cabeça, quero dizer, do outro lado do mundo é como estar de cabeça para baixo, e nessa posição, onde as coisas não parecem estar no seu devido lugar, precisamos nos reabilitar fisicamente para o mundo, reconhecê-lo, se atentar de novo e se realocar para ele. Cada passo de volta ao abstrato de uma memória que Lai se deixa vagar é misteriosamente o ponto de mudança que o habilita para uma nova realidade.
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