Em algum momento da história a humanidade abandonou a figura de Deus, mas, cometeu o erro de antes disso, não guardar tempo suficiente para olhar para si mesmo e de compreender a própria ideia do que é o ser humano, agora, sem Deus para pôr sentido no início, meio e fim de nossas vidas, acabamos num vácuo existencial sustentado por morais frívolas e uma percepção desencontrada da realidade.
As preocupações inseridas no quadro psico-social de "L’avventura" de Antonioni fazem parte de complexidades internas que em um instante parecem pertencer à particularidades recorrentes à vida das pessoas daquela geração, contudo, elas ainda ecoam, e de forma ainda mais efusiva, nos dias de hoje e talvez ainda muito distante no amanhã.
Os diversos cenários contemplados por figuras religiosas e principalmente, de passado religioso em "La avventura" são frequentes em sua continuidade de segundo plano no filme: do alto de uma igreja, Sandro contempla as construções arquitetônicas de cunho secular do passado e compara a liberdade de criação daquele passado com a limitação produtiva do seu presente; Claudia e Sandro encontram um complexo de construções aparentemente abandonadas com um crucifixo pregado em uma das entradas, os gritos de chamado de Claudia não são respondidos ("Veja, há um outro lá" "Aquilo não é uma cidade, aquilo é um cemitério"); numa visita à delegacia, Sandro nota que o local realiza seus trabalhos sobre o que era uma antiga construção paroquial.
Mas o que tem haver a religião com o enredo estranhamente apático desse filme? O que tem haver o sumiço de uma personagem com tudo isso? Há duas conclusões enfáticas que podem fazer-se entender o pretexto religioso: 1) a moral perde parte do seu valor conclusivo, o significado por dentro dela se esvai, sob as aparências, a fidelidade sobre as coisas perduram até a vontade resolver se esquivar, mas nunca, a de poder se comunicar e se afirmar desta forma; 2) o desespero existencial abalado pela abrupta falta de significado tenta se recompor na ânsia do desejo, da efemeridade e da volúpia apessoal.
Alguns dias atrás, só em pensar que Anna poderia estar morta, eu sentia que iria morrer também. Agora, eu nem mesmo choraria, temo que ela possa estar viva.
Anna, moça de classe alta, é a personagem que em um passeio de iate com os amigos e o namorado, desaparece misteriosamente e provavelmente por vontade própria; os personagens tentam procura-la, mas as vontades em acha-la vão diminuindo. Sandro, o noivo de Anna e Claudia, amiga de Anna, na busca em reencontra-la, convertem-se de conhecidos para íntimos amorosos, o medo agora se torna outro.
- E como é que se pode levar tão pouco tempo para mudar, e esquecer?
- Pode levar menos tempo ainda
A sexualidade vive um passeio diferente numa geração com pouco pra contar de si mesmo e pouco pra entender do outro, em concomitâncias burguesas o amor é muito fogo e quase nada: o prazer de Giulia em ser notada na sua aventura extraconjugal; os amassos frígidos de Anna com seu noivo; o pedido de casamento que ecoa sem sentido e sem resposta aos ouvidos de Claudia.
A incomunicabilidade? Entre os pertences de Anna depois de seu sumiço, nota-se a presença de uma bíblia sagrada e de um livro de Scott Fitzgerald; o livro em questão se trata de "Suave é a noite" - que acompanha o filme de Antonioni na percepção de uma vida amorosa coberta de desencontros comunicativos - A bíblia? Não seria ela a projeção extenuante do sacrifício moral? E não haveria ainda menos chances de ela conseguir se comunicar emocionalmente com esse novo mundo?
Não que a humanidade estivesse perdida ou que tivesse perdido algo há que se recompor, porém, que estivesse saboreando na superficialidade da vida o que acredita sorver o oco do ego. Como uma embarcação levando a sociedade à deriva e a caminho de um futuro incerto, "L'avventura" é um filme que trafega pelo ócio emotivo da vida contemporânea, ancorando sua lucidez em uma obra comportamental, que se exausta da distância alienativa entre os seres-humanos e procura em cada uma de suas cenas, os erros que finalmente possa os unir...
...Agora, alguém se lembra do afago da cena final? Seria ele o último ou o primeiro?
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