A Rosa púrpura do Cairo é uma delicada homenagem de Woody Allen ao cinema, aparenta ser ingênua, mas está repleta de ironias em relação a muitas coisas, principalmente à vida.
Em uma época difícil em que se encontra os EUA (a grande depressão), Cecília (Mia Farrow), uma jovem romântica e sonhadora que tem o cinema (principalmente filmes hollywoodianos) como um ponto de fuga da realidade tão dura em que vive, trabalhando como garçonete em um restaurante e sustentando sozinha a casa e os luxos do marido alcoólatra. Quase todas as noites, Cecilia ia ao cinema, principalmente quando tinha alguma estréia, lá estava ela, acompanhada ou não, não perdia as principais sessões.
Sua vida, seus sonhos, seus desejos e paixões estavam ligados ao cinema, que era para ela, mais que uma paixão, mas um modo de fugir da realidade.
O filme “A rosa púrpura do Cairo” (presença de metalinguagem) era visto com tamanha intensidade por Cecília, que acreditava serem reais as cenas e os personagens, que, de maneira “estranha” acaba atraindo para fora das telas, um dos personagens da trama, Tom Baxter (Jeff Daniels). É claro que esse tipo de coisa acontece nos filmes de Woody Allen, é sua especialidade brincar com as cenas, com personagens, e, principalmente usar o cinema para falar de cinema. Destaque nas atuações de Mia Farrow e Jeff Daniels, protagonistas da trama, e também à magestria na direção de Woody Allen, a fotografia, o cenário, enfim, o filme é delicado, bem feito e repleto de detalhes. A metalinguagem enriquece a obra ainda mais, pra mim, usar o cinema para falar do cinema, não é só genial, mas totalmente lírico, filmes como “Cinema Paradiso”, “Lisbela e o Prisioneiro”, “Os sonhadores”, e outros mais, são amuletos para os amantes dessa arte, repletos de muita sensibilidade e devoção por parte de seus criadores.
Na verdade, Woody Allen brinca com a tênue linha que existe entre a ficção e realidade, e, de forma genial, consegue criar essa obra tão delicada e inteligente. Quando mencionei “brincadeira” entre realidade e ficção, digo pelo fato de no momento em que o personagem Tom Baxter pula para fora da tela do cinema, e passa a viver no dia a dia com Cecília, ou seja, no mundo real, os diálogos entre ele e Cecília, eu diria que são como uma metáfora do amor proibido entre o que é real e o que é ideal (retratado pela ficção). “Tom é perfeito, mas não é real” diz Cecília, ou seja, é uma ironia, pois a perfeição só existe na ficcionalidade; “Existe uma vantagem em ser fictício, não sangro, não sinto dor, ...”; ironia também nesta frase de Tom. E ainda nesta: “A vida é engraçada”, principalmente porque Tom achava que na vida real as coisas eram complicadas, pois em sua “vida” dentro das telas, o dinheiro, por exemplo, era fácil, isso fica visível quando ele leva Cecília para jantar em um restaurante de luxo, achando que podia pagar com o dinheiro falso de seu “mundo”, ou, quando ele foi dirigir um carro e instigado diz à Cecília que nos filmes, não precisava dirigir de verdade que os carros funcionavam sozinhos, e também pelo fato de não haver música ao fundo, enfim, tudo era bastante diferente, e chega nos confundir também com o que é real e o que é fictício. É tudo novo e principalmente mais difícil, é a grande jogada do filme, o drama de ter que viver a realidade mesmo desejando viver a fantasia do cinema. “Não vamos discutir sobre o real e o imaginário, vamos apenas viver, a vida é muito curta”. Era a filosofia de Tom, e o que certamente convencera Cecília de estar ao seu lado e amá-lo, e principalmente uma das principais filosofias da arte, viver profundamente cada momento, e sonhar, o “carpe diem” prega muito isso.
As cenas de humor ficam por conta dos produtores e executivos de Hollywood que ficam preocupados com as confusões nas salas de cinema e dentro do próprio filme, já que, o personagem resolveu sair, as cenas não davam continuidade, deixando os demais personagens também enfurecidos. Gil Sheperd, o ator que interpreta Tom Baxter, o mais preocupado de todos com a confusão, resolve ir atrás de seu personagem antes que o mesmo estrague sua reputação como ator. Penso que aqui está uma crítica em relação às produções de Hollywood, sempre previsíveis, repleta de clichês e de tradições, e principalmente, apelativas ao comércio, ao status e à fama “comercial” de seus produtores, atores e demais envolvidos. Preocupados mais com a venda e o dinheiro do que o compromisso com a arte.
E entre muitas confusões e desencontros que ainda decorrerão na trama, Cecília e Tom, embora apaixonados, se vêem diante de escolhas que poderão mudar completamente seus destinos. Em meio a tanta confusão nos bastidores, nas salas de cinema do país todo e principalmente na carreira de Gil Sheperd, que, age rápido, e vai ao encontro de Cecília, para que ela convencesse seu personagem Tom a voltar para o filme. E nesse ínterim, Cecília encanta a Gil também, principalmente, é claro, pelo conhecimento que a jovem tinha de todos os personagens já encenados por Gil no cinema, isso afagava seu ego. Cecília acaba se envolvendo também com Gil, e com isso, era preciso decidir, se ela queria ficar com Tom, um homem "perfeito e ideal", e viver uma "eterna fantasia", ou escolher Gil, um homem do mundo real, um ator de Hollywood, perfeito aos olhos de Cecília, e assim viver uma vida repleta de sonhos, que ela mesma, sempre tivera. A jovem fica nesse impasse. Tom, o personagem de Gil, resolve levar Cecília agora para dentro das telas, ou seja, para dentro de seu mundo, lá, seu dinheiro valeria, lá, ele era “real” e assim, juntos, eles poderiam fazer o que quisessem, sem se preocupar com o marido de Cecília, ou mesmo com Gil, que queria roubá-la de Tom, é a grande "piada" da vida que agora é invertida. O enredo do filme vira uma bagunça, e a confusão só aumenta dentro e fora das telas, ficção e realidade se chocam.
No final de tudo, Cecília fica entre seus dois amores, o real e o ideal, o perfeito e o carnal. E ela escolhe ficar com Gil, que lhe fizera infinitas promessas de amor, de uma vida ao lado dele em Hollywood, de luxo e glamour. E é então que finalmente Tom, completamente arrasado e frustrado decide voltar para o filme, ou seja, para seu mundo fictício: “Ela está jogando fora a perfeição”, diziam todos, “embora eu seja tentada, eu tenho que me contentar com o real” dizia ela a todos que a questionavam, e principalmente a Tom. Eles se despedem, e decidida a fugir com Gil para Hollywood, Cecília vai correndo para casa arrumar as malas, e, encontrando seu marido, indignado com toda a situação, gritando com ela, dizia que ela ia se arrepender, e dizia tentando convencê-la a ficar: “a vida real não é como o cinema, vai conhecer o mundo lá fora, você vai voltar”.
E, como ela dispensara a perfeição para ficar com Gil, o mundo real que não é como a fantasia, Cecília sofre uma grande decepção, pois quando ela chega ao ponto de encontro marcado para a fuga, descobre que Gil já havia embarcado em seu avião de volta à Hollywood, completamente indiferente às promessas que fizera à jovem, sem dar-lhe explicações alguma. Ele apenas havia cuidado de seus próprios interesses, se aproximado de Cecília apenas para fazer com que seu personagem voltasse para o filme, Gil simplesmente voltou a ser o que nunca deixou de ser, um típico ator medíocre e interesseiro.
A grande “real” do filme é justamente essa ponte entre ficção e realidade, o limite entre uma e outra, onde uma acaba, e a outra começa, e o que, muitas vezes, o sonho causa na mente e nas atitudes das pessoas, ao ponto de fazê-las realmente “fugirem de sua realidade”, principalmente quando esta, não é nada fácil e nem se encaminha para um “final feliz” como na ficção, como nos filmes. “A arte existe para que a verdade não nos destrua”, dizia Nieztsche, e a arte possui esse poder, de transgredir, de causar epifania, de nos fazer sentir como se completamente fora da realidade, adentrar a fantasia, e, competir com o tempo e a razão, por meio da arte. Acredito que (opinião minha), Woody Allen conseguiu provar, que, a essência verdadeira da arte, o cinema em questão, é a magia, a transitoriedade entre este mundo e os sonhos, a fantasia, e a liberdade de poder "sair e entrar" sempre que possível. De todos os personagens, Cecília é a mais excêntrica, e o símbolo de todas as sensações que a arte causa; ela não tinha fama, não era tão bonita e desejada como as grandes estrelas de Hollywood; desempregada, vivia com um marido estúpido e machista, no entanto, sua alma é mais digna e pura, está mais voltada para a arte do que as verdadeiras estrelas de Hollywood (minha opinião também). É uma grande ironia do filme também, pois, quem deveria se entregar à arte, faz dela um comércio e um meio de preservar o “status” e um lugar de prestígio na sociedade. Isso é a essência das produções de Hollywood, mas não é a verdadeira essência artística, é por isso que Tom se apaixonou por Cecília, porque ela sentia e vivia a arte, se entregava a ela com paixão.
O filme termina com Cecília indo ao cinema, vendo a última estréia da semana, emocionada e contagiada, como sempre, pela magia do cinema, pelo sonho, pela epifania, as sensações e sentimentos que essa arte causava nela e em seu modo de viver.
Uma obra simples, sem grandes méritos ou reconhecimento, porém, como toda arte, excêntrica e única, e é exatamente isso que se tornou raro nos dias atuais, principalmente nas salas de cinema.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário