O cinema brasileiro consegue provar que pode ser bom, dessa vez, nas mãos de Guel Arraes, diretor não muito reconhecido, mas com uma bagagem de ótimos trabalhos na televisão e que vem se destacando no cinema, mesmo diretor de “O auto da compadecida”.
“Lisbela e o prisioneiro” merece uma atenção especial, e não pode ser visto como “mais um filme bobo brasileiro”, principalmente porque, se visto com extremo cuidado, chega perto de uma obra única, e Guel homenageou o cinema de uma forma bem romântica com essa trama.
Aconselho quem não assistiu ao filme ainda que pare de ler imediatamente pois precisei aqui contar partes cruciais do filme para poder discorrer meu comentário.
Quando estudamos literatura, chamamos obras como “Lisbela e o prisioneiro” de um trabalho de “bricolage”, ou seja, como se fosse um mosaico de costumes, cores, crenças, estilos e muita criatividade. Baseado na peça de Osman Lins, estamos diante de uma obra entusiasmada, cuidadosamente elaborada, com personagens carismáticos e divertidos, um verdadeiro palco onde nossa cultura, folclore e literatura são os astros que prestam a grande homenagem ao cinema.
A sinopse da obra é conhecida, o estilo clássico do nosso romantismo, tanto na literatura quanto na cultura popular; o mocinho que não é tão mocinho assim, uma tipologia de anti-herói, ou de herói picaresco, a mocinha da cidade que está prometida para o ‘playboy’ urbano, e o bandido que trará as complicações. A mocinha e o mocinho se apaixonam, mas não podem ficar juntos, e assim é construída a trama fictícia no nordeste brasileiro.
O primeiro e principal recurso utilizado pelo diretor para homenagear o cinema, é a metalinguagem, ou seja, a obra falando de si própria, um filme falando de filme, o cinema dentro do cinema, a arte dialogando com a arte:
“É uma comédia romântica com aventura. Um mocinho namorador que nunca se apaixonou por ninguém, até conhecer a mocinha. A mocinha vai sofrer muito porque o amor do mocinho é cheio de problemas. Um bandido que só quer saber de matar o mocinho por causa de mulher, essa mulher quer ficar com o mocinho, mas ele, não quer nada com ela. Os filmes são sempre assim. Mas a graça não é saber o que acontece, e sim como e quando acontece”.
Assim começa a narração de Lisbela (Débora Falabella), na primeira cena, quando está no cinema com o noivo Douglas (Bruno Garcia), e ela narra como se fosse onisciente (mas não é, porque está presente na historia), porém, está narrando a própria história, onisciente porque antes mesmo de começar o filme, ela já sabe os acontecimentos, e ela diz saber porque “todos os filmes são assim”. E assim nós teremos até o final uma comparação feita por Lisbela entre a vida dela com os personagens que ela assiste no cinema.
Lisbela dá essa dica logo na primeira cena quando está no cinema, todos sabemos que é uma das principais personagens, uma mocinha romântica e apaixonada pelo cinema, filha do delegado (André Mattos) e noiva do playboysinho de cidade grande (Bruno Garcia). Do outro lado temos Leléu (Selton Mello), um trambiqueiro e mulherengo que se envolve justamente com Inaura (Virginia Cavendish) a mulher do bandido mais perigoso do sertão, Frederico Evandro (Marco Nanini). E quando Frederico Evandro descobre, Leléu foge corrido pra não ser descoberto pelo assassino, e se esbarra na vida de Lisbela e os dois irão se apaixonar e muita confusão, desencontros e mentiras vão envolver o casal atrapalhando-os de ficarem juntos.
Como estávamos falando do foco narrativo, só quero ressaltar que ainda há um outro tipo de narração presente no filme, que é a “narração em off”, característica do cinema europeu, e este narrador sim é onisciente, pois não faz parte da trama. Sendo assim, o foco narrativo é o que há de mais rico no filme, pois todos os personagens narram, Lisbela, Leléu, o narrador em off, Frederico Evandro, e em algumas cenas a própria trilha sonora foi cuidadosamente escolhida e enriquece de forma incrível o roteiro, como parte crucial dele, um exemplo disso é a cena em que Leléu tenta impedir o casamento de Lisbela, porém, ao entrar na sala de presentes e ‘cair na real’ do tipo de vida que ela tinha, a musica “A deusa da minha rua” de Roberto Carlos soa ao fundo: “ela é tão rica e eu tão pobre; eu sou plebeu e ela é nobre, não vale a pena sonhar...”, ou seja, seria desnecessário dizer alguma coisa, ter alguma fala ou dialogo, pois a musica já disse tudo. E quando na cadeia, Lisbela deixa Leléu e imediatamente toca a musica “E agora, que faço eu da vida sem você, você não me ensinou a te esquecer”, completando outra vez o roteiro.
E como é rico de Brasil esse filme, rico do nosso folclore, a fotografia com leves tons envelhecidos, mas abusiva nas cores fortes e reais, sublinhando nosso tradicional folclore. Nossa cultura, de um modo geral, mas principalmente a nordestina, definidas e bem delimitadas pelos personagens, as superstições, os costumes, os dizeres, sendo Leléu a representação de um Don Juan do nordeste, o típico herói picaresco com aquele humor popular, as desventuras amorosas e a malandragem para conseguir algum dinheiro e conquistar mulheres; o machismo bem caracterizado pelo assassino Frederico Evandro, assim como os costumes e dizeres do “cabra-macho” como ele próprio era; o moço da cidade metido a conquistador e totalmente fútil representado por Douglas, o noive de Lisbela, a ingenuidade e ignorância do pai de Lisbela, e o próprio romantismo estagnado na moça. Interessante que o pai de Lisbela tinha receio de explicar à filha todas as vezes que o assunto “sexo” era aclamado, aquele costume dos pais terem vergonha de explicar aos filhos como se dá o relacionamento sexual entre um homem e uma mulher. E esse tabu se quebra quando Lisbela diz ao pai que já sabia como era tudo, deixando-o furioso, pois o cinema ensinava essas coisas, e que ela assistia filmes demais. Isso na década de 60 era uma realidade, a juventude e a cultura começava a se libertar de certos tabus e ignorâncias através de manifestações artísticas como o cinema. Lisbela e o prisioneiro também é muito rico em literatura, pois temos duas escolas literárias fortemente presentes: o romantismo, que impera, e o trovadorismo. E no estilo de composição, o filme remete ao estilo da literatura de cordel, característico do nordeste também (um tipo de poesia originalmente oral que depois era impressa em folhetins rústicos), onde há toda uma estética do melodrama teatral, o circo, os tipos de fala rimada principalmente usada por Leléu, que representava no palco o mesmo papel que o folhetim desempenhava nos jornais. Estratégia que deu certo na televisão, essencialmente nas telenovelas.
Em relação ao tempo e ao espaço do filme, não temos um tempo definido, sabemos que se passa na década de 60 pelo simples fato dos filmes que Lisbela assistia no cinema serem divididos em capítulos semanais. Porem, é notável que a trama não está presa a um tempo pré-determinado, pelo contrario, é solto num espaço mítico, um tipo de trama que pode ocorrer em qualquer época, ela se passa num passado, porem se caracteriza na contemporaneidade. E como temos um jogo de metalinguagem presente o tempo todo no filme, o dialogo que se dá entre realidade e ficção, o diretor diferencia com o uso das cores. As cenas dos filmes em preto e branco que eram a todo momento comparadas às cenas de nossos personagens, se destacavam, separando ficção e realidade. E outro aspecto interessante que vale ressaltar aqui em relação ao espaço é que as cenas principais do filme ocorrem dentro do cinema: o encontro, os beijos, as intrigas e a separação.
A metalinguagem que é a ponte de diálogo entre a ficção e a realidade, pois como disse anteriormente sobre as narrativas premeditadas de Lisbela, que narra sua vida como se estivesse comentando um filme que assistiu com alguém, sendo que na realidade ela esta assistindo e narrando o filme de sua vida. Terei que descrever alguns diálogos para explicitar o que falo:
“Lisbela: Eu queria ser artista de cinema, como as dos filmes americanos.
Leléu: Mas tem filme nacional também.
Lisbela: Só que apenas nos filmes americanos as histórias são bonitas. Histórias como a nossa costumam acabar mal”.
E quando Leléu vai fugir com Inaura:
“A mocinha está ansiosa esperando o mocinho, e finalmente eles se encontram. Ele vem se aproximando, e ela acha que é para dar um beijo, mas aí ela vê que o rosto dele está preocupado demais para isso. Ela é bestinha demais, coitadinha, ainda tenta dizer que ama ele, e ele tenta fugir, e ainda vai ficar com pena, pois com certeza tem um motivo, uma explicação, algo de força maior”.
E na cena em que Leléu preso, se despede de Lisbela:
“Leléu: Todo filme de amor acaba com um beijo, se nos beijamos, é porque vamos ficar juntos. Esse beijo foi nosso casamento.
Lisbela: Não. Foi nossa separação. Já acendeu a luz do cinema, e agora vai começar a minha vida”.
E ainda essa, no final quando Lisbela transporta seu espaço para dentro do cinema:
“No final, todo mundo sai antes de acabar o filme, aquele finalzinho ninguém gosta de ver, mas sempre fica algum casalzinho apaixonado, até o fim, e mesmo depois que o filme acabar eles vão ficar parados um tempão, até o cinema esvaziar todinho. E só depois eles vão acordar. Acordar depois de sonhar com a nossa história.
O amor é filme...”
E assim foi feita a homenagem de Guel ao cinema, linda, singela e muito bem feita. Pode-se dizer que o personagem principal aqui é o cinema e não o casal apaixonado. E as falas de Lisbela confirmam essa tese. O filme é composto por muitos signos, muitos detalhes, não caberia aqui dizer todos, e tudo no filme funciona bem, os atores e as performances estão impecáveis, a direção, a fotografia, o roteiro, o uso da metalinguagem, o jogo entre realidade e ficção, a analogia com os romances de nossa literatura, a trilha sonora complementando o roteiro, e como eu havia dito no inicio do texto, sobre bricolage, ate mesmo no meu comentário ocorreu isso, fiz um mosaico de descrição e comentários das cenas, assim como o filme.
Por esses e muitos outros aspectos que digo que esse filme é único, merece ser visto com cautela, merece ser reconhecido, o cuidado e genialidade com que foi elaborado, merece sim todos os méritos.
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