A tridimensionalidade já existia na animação a lápis. Mesmo nos longas pioneiros da Disney, datados do final dos anos 30 e começo dos 40, temos personagens robustas ou minimamente redondas que desafiam a bidimensionalidade do papel - vide os anões roliços de Branca de Neve, os vilões peso pesados de Pinóquio e Fantasia e os animais com anatomia e peso de Dumbo e Bambi. E se considerarmos a elaboração cenográfica e os movimentos de câmera, vemos que os primeiros filmes dispunham de uma profundidade de campo bastante admirável, como nos mostram os planos-sequência dramáticos de Pinóquio, Fantasia e Bambi. O que as animações por computador fizeram foi acentuar essa tridimensionalidade. Os volumes tornaram-se ainda mais esféricos e definidos, as texturas, sombreamentos e incidências de luz mais ricos e detalhados, os movimentos de câmera e a relação entre câmera/espaço mais complexos. O que a animação manual faria a um custo muito alto de trabalho e dinheiro, a animação por computador pôde realizar com bastante rapidez e apuração (e, importante, com um menor gasto).
No entanto, o CG deixou as animações muito presas à materialidade. Até nos filmes Disney que já prezavam por um desenho sólido vemos uma fluidez encantadora de traço, cor e forma, onde a matéria é subvertida com muita facilidade (a sequência dos elefantes cor de rosa em Dumbo ou mesmo a transformação da Fera em príncipe em A Bela e a Fera são bons exemplos). O detalhe extremamente elaborado das texturas, espaços e volumes tirou das animações essa capacidade de metamorfose com a qual até os corpos e cenários mais tridimensionais são decompostos por um simples rearranjo de linhas. Monstros S.A. da Pixar demonstra muito bem essa perda pelo contraste entre o corpo do filme e os créditos iniciais. Apesar dos momentos de grande energia, as cenas por computador não chegam perto da anarquia de desenhos e cores da abertura, muito semelhante aos créditos irreverentes de 101 Dálmatas.
Isso posto, as animações por computador ficaram bastante dependentes de suas caricaturas. Já que os corpos não podem ser transformados, façamo-los então os mais interessantes e divertidos possíveis, para que esse primeiro desenho sustente todo o resto do filme. E se uma boa caricatura ainda não é o suficiente para todo um longa-metragem, façamos uma copiosidade de caricaturas, uma tão ou mais atraente do que a outra. Esse é um dos principais trunfos dos filmes Pixar e Monstros S.A. é um dos melhores exemplos. A metrópole dos monstros, assim como o quarto de brinquedos de Toy Story e o oceano de Procurando Nemo, torna-se a justificativa perfeita para um divertido desfile de caracterizações, o que faz grande jus à riqueza do universo fabuloso infantil. E em cenas como o clímax das portas, os artistas Pixar liberam sua criatividade na concepção das possibilidades que essa diegese oferece, o que inclui a mise-en-scène complexa no cenário 3D que o computador oferece.
E além das concepções de personagem, a caricatura se dá na própria paródia da metrópole moderna e do mundo corporativo e industrial. A sacada de Monstros S.A. é fazer uma sátira à burocracia contemporânea através de um imaginário infantil já muito consolidado, o que garante um apelo duplo às crianças assombradas pelas histórias de monstro e aos adultos que vivem a crise de energia ou a rotina da fábrica. E concomitante à paródia ainda temos a sentimentalidade, dada a relação de pai e filha construída entre o monstro Sully e a pequena Boo, o verdadeiro coração do filme ou o que ele tem de mais memorável. No lançamento de Divertida Mente (também dirigido por Pete Docter), algumas resenhas criticaram a visão corporativa sobre a mente humana, transformada no filme em um sistema quase robótico, e Monstros S.A., produzido tantos anos antes, é passível da mesma avaliação. A fantasia infantil é convertida em um sistema industrial lógico no qual o grotesco e a perversão do monstro, o motivo porque tanto temíamos o mesmo, são transformados em dispositivos de funcionalidade e produção. O objetivo já não é mais o pesadelo, mas o produto desse susto. A redenção final da empresa de sustos em empresa de risadas também veicula um ideal contemporâneo do bem-estar corporativo, onde patrões e empregados são os melhores amigos e o trabalho não é dissociado do prazer ou diversão - uma imagem à qual a própria Pixar tenta se associar nos documentários dos DVDs e outros materiais de divulgação.
O contraponto a essa crítica é que Monstros S.A. (assim como Divertida Mente) também se estrutura num sistema em colapso. O atrativo do filme não é a "burocracia do susto" mas a destruição iminente dessa indústria, já que todo um sistema aparentemente inquebrável se revela extremamente frágil em questão de minutos. Isso se dá inclusive da maneira mais irônica possível já que o "agente patológico" da trama é a garotinha fofa de olhos grandes, chuquinha e pijama rosa e não o monstro do armário, a relação de pai e filha entre monstro e criança e não a velha relação de susto. Na cena em que Sully assusta Boo por acidente, o que faria completo sentido naquele universo se transforma de repente em motivo de estranhamento e tristeza e o desafio das personagens é tentar recompor os cacos da velha rotina e criar uma nova talvez ainda mais interessante (um plot também muito comum na filmografia Pixar). As subversões da paródia do mundo corporativo compensam portanto as subversões ausentes na animação por computador. O talento de Monstros S.A. e dos filmes Pixar em geral é trabalhar com criatividade os recursos que o CG lhes proporciona, construindo uma galeria de caricaturas e personagens digna dos melhores livros infantis de gravuras e histórias, ainda que com uma forte referência ao mundo moderno e contemporâneo. E se os monstros metamórficos do desenho animado já não existem mais, ao menos com a paródia ainda conseguimos dar algumas risadas.
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