É simbólico que a imagem de fundo dos créditos de Crepúsculo em Tóquio seja um tecido, tal como em outros filmes de Ozu. Todo o longa é uma tecelagem de fragmentos de tempo e espaço e de narrativas paralelas que convergem em potente melodrama. Em bela sintonia com as arquiteturas domésticas japonesas e a própria metrópole de Tóquio, os enquadramentos rigorosos dos ambientes internos e externos fragmentam os espaços em um continuum lógico, costurado pela montagem conforme a decupagem clássica do cinema ocidental. O mesmo se dá nos diálogos, onde cada atriz ou ator é enquadrado em primeiros planos individuais até a reunião de todos os agentes em plano de conjunto, num jogo de detalhe/conjunto e campo/contracampo também muito caro ao cinema narrativo. E concomitante às costuras da montagem e mise-en-scène, as costuras da narrativa, onde tramas praticamente autônomas são entrelaçadas em movimentos de reviravolta e tensão. A tecelagem das histórias culmina no fechamento de ciclos, também paralelos entre si: a fuga e o retorno da irmã mais velha para a casa do marido, o retorno e a saída do patriarca para outra viagem a trabalho.
Mas apesar das costuras, Crepúsculo em Tóquio é também um filme de desencontros. Ozu nos coloca dentro desses espaços em imersões profundas nos ambientes domésticos, mas a câmera estática nos impede de enxergar o outro lado. Há uma tensão entre o que podemos observar nesse quase voyeurismo (ainda que sejamos mais convidados do que intrusos) e a liberdade dos atores quanto ao enquadramento do cenário e da própria câmera: estes se movimentam com liberdade pelos recantos do espaço, atingindo lugares que já não podemos alcançar na fixação do olho-câmera. É curioso inclusive como o espaço se torna, em muitos planos, o motivo principal da imagem em detrimento dos próprios atores. As personagens são quem constituem os elementos cenográficos e não o contrário: elas "brotam" das armações estruturais e planos de espaço enquanto o cenário mantém-se sólido e firme, como se fosse o único elemento de maior longevidade em comparação com seus ocupantes atormentados. Concomitante às rimas narrativas, o entorno é também motivo de rimas visuais, dada a repetição de enquadramentos sobre aberturas e corredores que cadenciam todo o longa-metragem, em repetição cíclica de ambientações.
É certo que os primeiros planos dos diálogos privilegiam a figura dos atores, mas eles igualmente simbolizam desencontros de montagem e mise-en-scène. Embora as personagens se dirijam ao seu parceiro de cena, os enquadramentos próximos de grande frontalidade os isolam dessa contraparte cênica, convertendo os diálogos em trocas de monólogos. A fala é dirigida a um espectador virtual, uma presença fora de campo que se confunde com o próprio espectador, o que torna o velho jogo de campo/contracampo em algo mais complexo: um jogo de diálogo e solidão. O desencontro entre os corpos não se limita inclusive à individualização dos planos próximos. Até nos planos de conjunto há uma desarmonia entre os atores, com a disposição dos corpos em diferentes poses que nunca possibilitam um contato plenamente frontal ou mais físico. Os corpos raramente se tocam pois o que impera é a virtualidade.
O desencontro é o que desestabiliza toda a trama familiar dos Sugiyama, pelo que ainda não foi dito, revelado ou descoberto, e mesmo a convergência de algumas tramas não impede a permanência de outras em paralelo, como a gravidez e aborto da irmã mais nova, a qual a única exceção à trajetória cíclica de personagens como o pai e a irmã. Os pontos nevrálgicos da narrativa são relegados justamente ao extracampo - a operação de aborto, o acidente e morte da jovem, o passado de sua mãe. Crepúsculo em Tóquio é também povoado por narrativas paralelas que se interpõem na tecelagem da narrativa principal - os amigos do jogo, os bêbados do bar, o delinquente na cadeia. Tóquio afinal é composta de muitas histórias para além da que Ozu decide acompanhar, e elas ainda encontram seu lugar na costura do filme, compondo uma espécie de mosaico. Da mesma forma, os enquadramentos singelos sobre placas de rua, pêndulos de relógios e outros elementos cenográficos suspendem a diegese em outra fragmentação de tempo e espaço, além de fortificarem o drama principal com associações simbólicas e suspiros de melancolia.
Infere-se portanto a relação de Ozu com a metrópole japonesa, mais e mais uma metrópole ocidental. A modernidade fragmentou não só o tempo e o espaço mas as relações humanas, convergindo-as todas para uma virtualidade da qual hoje somos os maiores consumidores. Ozu potencializa essa fragmentação com a decupagem clássica, usando a montagem como único vínculo definitivo entre personagens e entornos separados por enquadramentos rigorosos e pouco cambiáveis. Se houve uma vez um fluxo, este foi perdido, ironicamente, com a imagem em movimento, pois o filme ainda é, em Ozu, um ato de moldura e enquadramento, e por consequência uma percepção fragmentária da realidade onde o que impera é o desencontro e não o conjunto. Mas a melancolia não sucumbe ao pessimismo moderno. A fragmentação não é empecilho para a costura: mesmo que não tenhamos todos os retalhos, juntemo-los; façamos esse tecido ainda que ele termine incompleto. Se as personagens anseiam a reconstrução de suas vidas, o mesmo ocorre em relação a Ozu e sua persistência de unir o que foi desintegrado, pôr os corpos em contato independente de qualquer virtualidade.
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