Atualmente, com sua carreira de mais de 30 anos como diretora, Kathryn Bigelow finalmente se vê em evidência após ser a primeira mulher a ganhar os Oscar de Melhor Direção e Melhor Filme (por Guerra ao Terror). Seus filmes quase sempre foram modestos, com repercussão e orçamento baixos, e nem mesmo seus trabalhos mais conhecidos, Caçadores de Emoção e Estranhos Prazeres, não bastaram para que ela tivesse uma notoriedade que fosse além do título de “ex-mulher do James Cameron”.
Jogo Perverso é um de seus melhores (e mais esquecidos) trabalhos, produzido por Oliver Stone e estrelado por uma Jamie Lee Curtis no auge do sucesso e tentando emplacar em filmes mais diversificados, para fugir dos estereótipos que a perseguiam – de ‘Scream Queen’, após slasher’s vagabundos como Enigma na Estrada e A Morte Convida Para Dançar, e as obras-prima de John Carpenter, A Bruma Assassina e Halloween – A Noite do Terror, à imagem de símbolo sexual por seus papéis cheios de erotismo – e poucas falas – nas comédias Um Peixe Chamado Wanda e Trocando as Bolas.
Na trama, a atriz vive Megan Turner, uma policial recém-graduada que acaba matando um assaltante em um tiroteio num supermercado logo na sua primeira ronda. Após a troca de tiros, Eugene Hunt (Ron Silver completamente psicótico), um respeitado corretor da bolsa que fazia compras no local, pega a arma do bandido caído no chão sem que ninguém veja e foge, fazendo com que ela seja suspensa de suas atividades por suspeita de ter atirado em um homem desarmado. Fascinado com o que presenciara, Eugene passa horas admirando a Magnun 44, mirando contra espelhos, vasos e quadros enquanto, até que, na noite seguinte, resolve sair às ruas com seu ‘brinquedinho’. Em meio aos becos escuros de NY, ele atira em um homem. Do nada, sem motivo aparente, sem justificativa. Ele simplesmente descarrega sua vontade de atirar na cabeça do primeiro azarado que encontra no caminho.
À partir daí, a velha e batida, até mesmo para a época em que fora lançado, fórmula da policial em conflito com seus superiores sendo acusada por algo que não fez corre em paralelo com a busca pelo assassino que, até então, não sabe-se que tem relação com ela. Porém, Eugene faz com que eles se esbarrem “acidentalmente”, dividindo um táxi e, após uma breve conversa carregada de indiretas, saiam para jantar. Esse ato, mais que a um envolvimento amoroso eminente entre os dois, é a partida do tal jogo perverso do título: na mesma noite, um homem é encontrado morto e com o nome de Megan cravado na cápsula que o atingiu. Agora ela estava diretamente ligada ao caso (só não se sabia ainda se como suspeita ou provável vítima).
Basicamente, o filme se divide em dois atos distintos: a busca pelo assassino, onde tenta-se descobrir sua identidade, quem serão as próximas vítimas e qual a razão de Megan ter sido a escolhida para figurar em tais crimes, e a fuga do mesmo, após descobrirem sua identidade e ele, então, pôr em prática a última parte de seu plano, matar Megan. Em momento algum, o ritmo cai. Pelo contrário, o clima de tensão é crescente, aumentando à cada nova mensagem deixada junto às vítimas e, principalmente, à medida em que vemos Megan mais e mais envolvida com seu próprio algoz.
Nesse meio, uma característica que marca a carreira da diretora se mostra bem evidente: as tramas e motivações de seus personagens, em geral, se baseiam em suas obsessões que, consequentemente, acabam por destruí-los. Em Caçadores de Emoção, Patrick Swayze liderava uma gangue que roubava bancos para financiar suas viagens para surfar ao redor do mundo (!!!), além, é claro, da iminente adrenalina da fuga das autoridades; O Peso da Água conta com uma escritora que pesquisa sobre um crime do passado para compôr seu livro e, completamente imersa na história, sente como se pudesse mudar o que ocorreu séculos antes; Estranhos Prazeres e seu protagonista “contrabandista de emoções” e o atual Guerra ao Terror, com sua tão elogiada abordagem da guerra como um “vício”, também reafirmam esse veio autoral, que muito lembra um Abel Ferrara (só que de modo bem mais contido).
Eugene é um assassino frio que, aparentemente, tinha algum distúrbio mental latente que é despertado pelo “trauma” do assalto, passando a agir como se estivesse possuído pela arma. Ron Silver confere um ar completamente doentio ao seu personagem, mas o roteiro escorrega bonito por não explicar de forma convincente as motivações aos crimes, limitando-se a mostrá-lo conversando com as “vozes” em sua cabeça. Há referências bem vagas que relacionam sua psicopatia com seu trabalho, inferindo, talvez, uma crítica social (de dia um figurão respeitado, de noite um louco matador frio), mas que se mostram pouco convincentes ou nulas, até, tendo visto a abordagem superficial do roteiro que, à certa altura, pára de tentar explicar as coisas e foca apenas na perseguição do assassino à Megan.
Se por um lado o filme perde em termos de trama, cresce consideravelmente na construção de uma atmosfera de tensão. Longe do vício irritante da “câmera na mão” de seus trabalhos mais recentes, Bigelow se mostra competentíssima ao tornar becos, ruas, um corredor escuro dentro de casa e até mesmo o próprio reflexo de Megan espelho de banheiro, inimigos em potencial. A sequência final peca por uma reviravolta desnecessária e absurda (a psicose adquirida e a inversão de papéis), talvez a maior das falhas do roteiro, mas é recompensada com o grande clímax do filme, da perseguição no metrô e seu desfecho ao duelo em uma avenida movimentada da cidade, favorecido também pelo excelente trabalho de fotografia de Amir Mokri, de fazer brilhar os olhos dos mais saudosistas àquela época.
Espero que seu Oscar por Guerra ao Terror sirva ao menos para dar maior visibilidade a esse e outros filmes da diretora, excelentes trabalhos que, infelizmente, não tão lembrados quanto as bobagens de orçamentos milionários do seu célebre ex-marido.
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