Tido por grande parte dos críticos hoje em dia como o “herdeiro” de Hitchcock, Brian De Palma, mesmo não tendo tanto talento quanto seu “mestre”, faz jus ao título que carrega.
Começou a ser notado nessa “empreitada” em 1973, com “Irmãs Diabólicas”, seu primeiro thriller de maior reconhecimento, e desde então não parou mais. Em 1976 fez sua versão (livremente adaptada) de “Vertigo” no excelente “Trágica Obsessão”, chegando à sua maior (e mais discarada) homenagem até então: “Vestida Para Matar”, em 1980, onde De Palma transporta “Psicose” para NY e substitui o chuveiro por um elevador.
Entretanto, ainda estava por vir aquela que seria sua definitiva “declaração de amor” ao mestre do suspense. “Dublê de Corpo” engloba as duas maiores obras-prima do inglês: o já citado “Vertigo” e “Janela Indiscreta”. E aqui ele vai muito além das meras referências.
No filme, Craig Wasson é Jack Scully, um ator fracassado de filmes B que, após ser demitido, flagra a esposa na cama, com outro. Deprimido (sem mulher e o emprego), vai a testes para um novo filme e lá conhece Sam (Gregg Henry), também ator, que comovido pela situação do “novo amigo” o oferece a oportunidade de se hospedar na casa que ele tomava conta para um colega, uma luxuosa mansão com uma belíssima panorâmica da (nobre) vizinhança.
Sam aponta a Scully o que seria o melhor daquela belíssima vista: uma luneta direcionada à mansão de uma vizinha, a deliciosa Glória Revelle (Deborah Shelton), linda, rica e que inexplicavelmente faz todas as noites, no mesmo horário, um striptease na janela de seu quarto. Coincidentemente, naquele exato momento, ela acabara de começar o seu “show noturno”. À partir dali, Scully se entrega à uma fissura voyeur que em pouquíssimo tempo rompe a linha entre a admiração e a obsessão.
Após observar o espetáculo da noite seguinte, ele percebe que não é o único a observar a bela vizinha e, desconfiando das [más] intenções do outro indivíduo que a cerca, passa a seguí-la, iniciando uma investigação por contra própria a fim de descobrir o que aquele homem misterioso que admirava Gloria do jardim de sua casa queria.
Não precisa ser um gênio para descobrir as referências a “Janela Indiscreta” (e também que isso não vai acabar muito bem para nosso protagonista). Após uma breve investigação (com um desfecho bem trágico – e até mesmo inesperado, diga-se de passagem), a trama dá uma guinada completa, em uma reviravolta que leva Scully a adentrar na indústria da pornografia, buscando em Holly Body (Melanie Griffith, no auge de sua beleza) as respostas a toda aquela situação e encontrar quem estava por trás daquela armação toda.
O grande mérito do filme é sair da homenagem pura e simples a Hitchcock e, por meio desses dois clássicos, se transformar em uma verdadeira salada de referências, não só ao diretor inglês, mas ao cinema como um todo, seus estereótipos e “dogmas”.
Ao mesmo tempo em que De Palma mantinha em Scully a essência de Jeff (personagem de James Stewart em “Janela Indiscreta”), carregando as características básicas dos heróis Hitchcockianos, com sua simplicidade e certa inocência, o que o tornava completamente suscetível às tramas dos vilões (fazendo uso, inclusive, de sua mania de perseguição) e de Scottie (personagem de Jimmy, em “Vertigo”), que se deixa seduzir pelos encantos de uma bela e misteriosa mulher, Gloria (e um trauma que desencadeia sua fobia) - elementos estes definitivos para entendermos como os acontecimentos se desencadearam e o rumo trágico que tudo tomou.
Ele faz de Scully uma junção desses dois personagens, em alguns momentos, às avessas, fazendo do protagonista [também] uma verdadeira desconstrução do arqueótipo do herói que eclodia à sua época: um ator de filmes B (grandiosidade do cinema? Não mesmo!) desempregado, enganado pela mulher (nem mesmo tinha onde morar – além de traído, é expulso de casa – que era de sua ex), além de ser claustrofóbico, o que acabava atrapalhando-o em seu trabalho (logo nos primeiros minutos do longa ele perde o papel principal de um filme no qual trabalhava por ter tido uma crise ao filmar uma cena em que precisava ficar preso num caixão).
Essa desconstrução parte de dois pontos relativos às obras em que o filme se baseia. Enquanto, em “Vertigo”, os medos de Scottie afloravam nas alturas, os de Scully vinham “de baixo”. Um dos maiores clímax de “Vertigo” (a primeira crise de vertigem de Scottie), logo no início do filme, em “Dublê de Corpo” é transferido ao final, e o alto de um prédio é substituído por um buraco (uma cova para ser mais específico). É o ápice da canalhice (sim, isso foi um elogio) do De Palma. O glamour da Hollywood da década de 50 (tida por muitos como a “Era de Ouro” do cinema) é substituído por um buraco que se transformava num imenso precipício (o que ouve-se falar da década de 80 para o cinema, mesmo?).
Ademais, poderia dedicar parágrafos e mais parágrafos só para elogiar a parte técnica, mas isso serviria somente para cair em redundâncias. Todos os filmes do De Palma após “Sisters” têm um aspecto técnico invejável, mesmo nos mais fracos (a fotografia e os travellings iniciais de “Dalia Negra” são um deleite - já o filme como um todo, é melhor nem comentar). Sem falar na sua grande habilidade para dirigir cenas de tensão com forte impacto no espectador. Não há um filme do De Palma que não tenha pelo menos uma cena de ação de prender a atenção e nos fazer suar (como as fantásticas sequências do assassinato e de sua revelação mostrada por vários ângulos diferentes no terrível - e nesse caso não foi um elogio – “Olhos de Serpente”).
Aqui, há o que ele sabe fazer de melhor em termos de “peripécias” com a câmera, edição e uso de trilha (mais um ótimo trabalho de seu parceiro de longa data, Pino Donagio). Os planos da perseguição no shopping e seu desfecho na praia (a cena do beijo em que a câmera faz circulares em volta dos dois é uma cópia tão explícita e cara de pau do beijo em “Vertigo” que sinto vontade de bater palmas sempre que revejo - sim, novamente afirmo que fiz um elogio) constituem um dos melhores momentos de toda a sua carreira, perdendo apenas para o tiroteio nas escadarias da estação de trem em “Os Intocáveis” (1987) e toda a sequência do acidente - e de sua reconstituição - em “Blow Out” (1981).
A trama, como já foi dito, apesar de assumidamente “cafona”, é uma das mais conspiratórias e bem boladas da carreira do De Palma. E impressionante como, mesmo tendo uma solução bem simples, a revelação não se faz completamente evidente até os momentos finais (e olhe que logo no meio do filme as respostas já nos são jogadas praticamente “na cara” - vide o trocadilho genial com o nome da personagem da Griffith).
Infelizmente, da mesma forma que “Vestida Para Matar” (outra obra-prima inconteste), e boa parte de seus trabalhos, “Dublê de Corpo” foi duramente massacrado pela crítica à época do lançamento, tanto por ser “plágio de um cineasta mais famoso” (é, definitivamente a crítica não entendeu a proposta do filme), além das retaliações às cenas de alto teor sexual (que nem chegam perto do que o De Palma realmente pretendia - reza a lenda que ele queria lançar uma versão “X-Rated”, com uma famosa atriz pornô americana interpretando a Holly Body) e de violência (lembram da motosserra em “Scarface”? Bem, agora é a vez de uma enorme furadeira). Seu reconhecimento só veio bem mais tarde do que deveria (e, mesmo assim, ainda não à altura).
De sua filmografia, meus preferidos ainda são os já citados “Os Intocáveis” e “Um Tiro na Noite” (estes alternando o topo à cada vez que os revejo). Entretanto, chega a ser um completo desrespeito não reconhecer a grandiosidade deste aqui. Desrespeito não só com esse grande diretor (sim, o De Palma é um dos que podemos chamar de brilhante sem receios, mesmo com tantas “escorregadas” em sua filmografia), mas com todo o cinema que esta obra-prima procura homenagear do seu primeiro ao último frame.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário