Afundado em dívidas após uma arriscada e mal-sucedida incursão no gênero musical, Francis Ford Coppola precisou deixar de lado a extravagância de O Fundo do Coração (1982) e contentar-se com projetos mais modestos. Lançou num mesmo ano – baseados em livros da mesma escritora, S. E. Hinton – dois filmes onde tematizou o mesmo fenômeno a partir de pontos de vista absolutamente distintos. Em Vidas Sem Rumo (1983), o universo de violência juvenil e brigas de gangues ficou reduzido a uma abordagem superficial e distanciada, que pouco se esforçava para tirá-lo do lugar-comum. Isento de qualquer intuito autoral, acabou por limitar o discurso do diretor e se mostrou insuficiente para suas inquietações artísticas. Ainda durante as filmagens deste, Coppola apressadamente elaborava o roteiro de seu filme seguinte. Ansiava reconstituir a cultura da juventude marginalizada sob uma linguagem nova, que pudesse encarnar sua tragédia e percorrer sua trajetória por inteiro – a fotografia diurna do primeiro filme, trocou pela noite; as cores, por um claustrofóbico preto-e-branco; um arco narrativo usual, substituiu por um "espiral" de acontecimentos negativos; o olhar distante, por fim, deslocou para o interior da experiência. Rumble Fish (ou, no Brasil, "O Selvagem da Motocicleta"), que do singelo conto sobre dois irmãos rebeldes e seus tormentos, alcançou as profundezas do sentimento de contracultura num monumento sombrio e honesto, talhado em alta estilização para conceber como pesadelo sua releitura de toda a simbologia que moldou gerações – a beatnik, o movimento punk –, e da qual a indústria de Hollywood se apropriara e abandonou com indiferença. Não se podia mascarar, porém, a gravidade deste tumor que havia se instalado no cerne da sociedade e a transformava continuamente desde então – um terremoto atuando extensamente na cultura ocidental, muito além das jaquetas de couro e das motocicletas.
Ao que se inicia a história, são tempos tranquilos na cidade pois a mais perigosa influência dos jovens locais, figura de liderança tanto obscura quanto iluminativa, Motorcycle Boy (Mickey Rourke), viajou há alguns meses para conhecer a Califórnia em sua moto. Seu nome e sua fama, no entanto, permanecem bem vivos, seja estampados em pichações por placas e muros ou na imaginação dos garotos de lá. No vácuo desta ausência conhecemos Rusty James (Matt Dillon), irmão mais novo de Motorcycle Boy, que está jogando bilhar com os amigos na lanchonete quando entra um homem para avisá-lo que o esperam aquela noite com hora marcada para um confronto. Enquanto encaçapa a bola branca, nenhuma intimidação parece provocá-lo aquele comunicado: pela bravura espontânea reconhecemos nosso herói. Seus companheiros talvez o assemelhem nas roupas e nos modos grosseiros, mas não demonstram a mesma prontidão para o desafio. A bandana brilhante na testa, brinco e camisa regata imprimem em Rusty James certo tom de irreverência e atitude um pouco contrastante com os traços adolescentes – no balcão pede leite achocolatado; o atendente caçoa-o dizendo para "crescer uns pêlos no peito". Ainda estão na divisa para a fase adulta, por mais que escondam isso nos palavrões, fumando cigarros e arranjando-se em gangues. Quando um deles, Smokey (um jovem Nicolas Cage), hesita em comparecer a briga – já sugerindo um desalinhamento do personagem com o grupo –, é recebido com provocações e zombarias que cessam somente após Steve (Vincent Spano) – que destoa nitidamente do restante pelo visual nerd e uma madura sensatez – interromper com uma ponderação sobre a volta de Motorcycle Boy. Rusty James irrita-se, pois finalmente está podendo se afirmar e tomar a frente daquele espaço, fora da sombra enorme que seu irmão projetava e desde sempre o ofuscou. Seu carisma irresistível agora protagonizava sozinho, em sua personalidade indisciplinada e enérgica, movida por uma coragem inconsequente e uma revolta instintiva.
Além disso, seus amigos também são meios para suscitar outras características importantes de Rusty James: descobrimos sua lealdade extraordinária na improvável amizade com Steve, cujo aspecto careta e os modos cautelosos revelam alguém essencialmente oposto ao protagonista, que o equilibra e compensa sua falta de limites, mesmo que também Steve intimamente carregue certo fascínio pelo espírito transgressor; o contraponto se estabelece na cínica figura de Smokey, a princípio apenas uma presença dissimulada, sempre com sutis provocações – mas que se mostra, num segundo momento, um manipulador malicioso: conduzir uma invasão à casa vazia com várias garotas, facilitando a tentação de uma orgia caótica, eram planos arquitetados precisamente para atingir o relacionamento de Rusty e roubar sua namorada. Mais especificamente, Nicolas Cage comparou seu personagem com um Iago shakespeariano (o vilão travestido em amigo, personagem de Otelo) e evidencia em nosso herói seu defeito fundamental: por mais que seja um habilidoso lutador ou uma liderança apaixonada, é simplesmente incapaz de antever em Smokey o inimigo iminente – falta-lhe alguma astúcia, por acaso sobrante para seu irmão Motorcycle Boy, onde nele se origina uma insegurança latente. A namorada de Rusty James, aliás, é quem parece enxergar com maior nitidez e com sincera afeição estas suas virtudes e fraquezas. A atriz Diane Lane conjugou impecavelmente as nuances da personagem Patty,que tanto se resguarda e se protege, com o jeito sério e desconfiado – consciente do insensível descompromisso de seu namorado –, como se desmancha facilmente e cede à intensa paixão adolescente.Estes aspectos díspares se confundem na delicada sensualidade da interpretação. Afinal, trata-se da garota que invade os sonhos e devaneios eróticos de Rusty, pairando de lingerie sobre a sala de aula; ou quando ele pensa estar à beira da morte e volta seus pensamentos para ela, arrependido. Patty pontua nele esta abertura para a sensibilidade, que todavia se mostra insuficiente diante do desejo cego e desenfreado de Rusty por tornar-se idêntico à seu irmão.
Mas este ambicionado projeto pessoal se delineia cada vez mais como a pequena tragédia de Rusty James. A sequência da batalha de gangues sob os arcos abandonados sutilmente introduz esta realidade inevitável: depois de vencer admiravelmente a luta, desferindo golpes fantásticos e levando todos ao êxtase, seu momento de glória é bruscamente interrompido pela chegada imprevista do irmão. Quando todos os rostos se viram para Motorcycle Boy, e o olhar fascinado de Rusty principalmente, o adversário que estava caído aproveita para esfaqueá-lo na barriga. Enquanto sangra, é socorrido por Motorcycle Boy; a dor da facada contém a volta ao posto de frágil irmão caçula. Entretanto, outro detalhe crucial também se anuncia nesta cena: na exagerada coreografia da luta, desde as piruetas com correntes e canos até o bizarro golpe em que a moto gira no ar, encontramos uma artificialidade gritante. As velozes nuvens num eterno time-lapse, as sombras deformando os ambientes, as ruas desertas e terrenos baldios do cenário abrigam a mesma artificialidade. Esta sensação permeia o filme – há uma névoa que atravessa todos os lugares; a iluminação de contrastes e muito breu, aproximando-o de um sinistro cinema expressionista; o desenho de som manipulando escancaradamente atmosferas, acrescentado pela percussão desconfortante da trilha-sonora; até culminar, enfim, no trecho surreal de Rusty flutuando por sua imaginação de como os outros lembrariam dele se morresse – e não se assume este tom tão fantasioso em vão. As escolhas estéticas de Rumble Fish sustentam a complexa noção de tempo da história. Afinal, quando o filme foi lançado em meados da década de 80, o mito do "rebelde sem causa" já estava distante do imaginário popular americano. Mas a história nunca nos localiza em data alguma, e pelo enredo evocar tantos símbolos dos anos 50, até pode-se presumir que a ação ocorra no passado. Somente através dos constantes resmungos de Rusty James sobre "os bons e velhos tempos, quando as gangues significavam algo de verdade, antes da chegada da heroína", deduzimos que eles realmente estão no presente – e estariam, portanto, por alguma razão extraordinária, vivendo como se estivessem presos ou congelados no tempo. Perderam-se dentro daquela névoa, turva demais para se enxergar qualquer perspectiva de futuro, e precisam firmar suas identidades no terreno de um passado morto. Em todos os diversos aspectos do tratamento onírico dado à obra, se reforça e legitima o estranho pesadelo que configura a realidade daqueles personagens.
A equação do estilo e sua metáfora fica mais interessante quando nos é dado saber que Motorcycle Boy sofre daltonismo para cores e é parcialmente surdo. Logo, ele assiste a tudo aquilo tal como nós, espectadores – como "uma TV em preto-e-branco, com o volume baixo". Se até ali seu protagonismo parecia secundário, tal informação assegura neste personagem a centralidade da trama. A câmera está fixada no ponto de vista dele. Antes de entrar em cena, já se constata sua presença em muros pichados e nas conversas dos meninos. Do que apreendemos da fala dos outros, Motorcycle Boy inspira liberdade e contestação; teria sido ele quem iniciou esta nova postura, encabeçando a reforma comportamental dos jovens diante do sistema – e ele quem, inusitadamente, antes de viajar para Califórnia, deixou ordens estritas aos garotos para abandonar as lutas. Por isso, com o surgimento de Mickey Rourke na tela, materializando a expectativa ingênua que construíamos, se desvela a essência grave e misteriosa por trás daquele mundinho aparentemente trivial. Ao invés de uma figura expressiva e contagiante, deparamo-nos com alguém de aparência fantasmagórica, desprovido de qualquer vigor e ânimo, que reencarna um James Dean de Juventude Transviada (1955) ou Marlon Brando de O Selvagem (1953), mas sob roupagem moderna de cansaço e decadência; um sujeito solitário, deslocado de sua comunidade ("a realeza em exílio") e sempre envolto nos próprios pensamentos; com o peso do corpo encostado em alguma parede, o olhar longe e a voz quase muda, falando em sussurros. Apesar disso tudo, os mais jovens ainda idolatram-no; ao passo que o establishment – representado no policial autoritário e hostil, oculto detrás de imponentes óculos escuros e grosso bigode – considera-o louco e lhe reserva ódio profundo. Confinado neste maniqueísmo ignorante da sociedade, nada restou para Motorcycle Boy senão entregar-se à passividade e indiferença. Para dar rosto à uma massa anônima de adolescentes rebeldes foi preciso abdicar de sua individualidade: nem chegamos a saber seu verdadeiro nome; encontra-se mais vivo quando achatado em páginas de revista, ilustrando artigos desesperançosos sobre uma "juventude perdida". Sua imagem foi apropriada por terceiros e reconstruída dentro da crença de cada um, dando a todos o direito de julgá-lo e a ninguém a disposição para entendê-lo. Nem mesmo Rusty, apesar de esforçar-se genuinamente. Há uma falha de comunicação irreparável entre os dois irmãos: em vários diálogos, por culpa de ninguém, algum deslize banal ocorre, perde-se uma referência ou diz-se algo e se ouve outra coisa. Tão convencido de sua similaridade e afinidade com o irmão, Rusty mal repara neste abismo que os divide e, fixado naquela projeção idealizada de Motorcycle Boy, está fadado a jamais compreendê-lo. O teor trágico desta cegueira de nosso herói se apresenta na medida em que todos os outros personagens, bem como o espectador, visualizam com clareza seu destino – e mesmo quando Rusty tenta desviá-lo pela embriaguez, abafando-o no barulho do bar, a verdade irrompe na voz calma e convicta de um desconhecido qualquer, que lhe descreve Motorcycle Boy como se seu próprio subconsciente atordoado quisesse emergir. Pior para Rusty, enfim, pois na imitação mecânica de determinado modelo e ideais supostamente personificados por seu irmão (que talvez estejam resumidos quando diz: “eu pensava que você nunca se arrependia de nada.”), ele acaba reproduzindo velhos hábitos e falsos valores esvaziados de significado, convertendo impulsivamente sua rebeldia numa atração incontornável para a autodestruição (seja na bebedeira, nas lutas ou nos relacionamentos) – e assim se estabelece um sério questionamento sobre a associação quase institucionalizada entre cultura adolescente e espetacularização da marginalidade, iniciada dentro do contexto de contracultura e eficientemente readaptada ao longo das gerações, através de um contraditório sistema de censura e glamourização midiática.
Até onde lhe permite sua imensa apatia, Motorcycle Boy demonstra carinho e preocupação pelo irmão mais novo, questionando seu modo irresponsável de administrar a própria vida. Esta compaixão – qualidade discreta mas poderosa, levada às últimas consequências ao final do filme – ressoa especialmente na personagem Cassandra, a menina junkie e problemática que teve um caso mal resolvido com ele no passado. Imaginar alguém como seu irmão, tão desapegado de si mesmo e dos outros, se entregando à um relacionamento, causa no pobre Rusty James ciúmes fervorosos, disfarçados no preconceito pelo vício de Cassandra em heroína. Mas a piada que provoca risos nervosos entre Motorcycle Boy e seu pai – e cuja interpretação escapa à inteligência limitada de Rusty, que brada como de costume “I don’t give a shit about the greeks!” – redireciona o propósito narrativo da personagem. Na mitologia grega, Cassandra foi uma bela mortal por quem encantou-se o deus da sabedoria Apolo, e dele recebeu o dom de prever o futuro. Porém, a recusa em deitar-se com ele leva Apolo a se vingar retirando a credibilidade de suas profecias, fazendo com que ninguém jamais lhe dê ouvidos novamente: Cassandra passa a ser tida como louca, condenada a assistir Tróia sucumbir a desgraças e catástrofes, pois todos os seus avisos foram ridicularizados. Ao tecer esta ponte até a Grécia antiga, injetando na obra seu senso de atemporalidade, e por realizá-lo através desta personagem especificamente – a forma de vida mais baixa daquele universo, derrotada pela droga e invisibilizada pelo estigma –, Rumble Fish localiza a profundidade do buraco ao qual se reporta. Muito deste peso simbólico do filme está concentrado numa sequência-chave, na metade da projeção, quando Rusty, Steve e Motorcycle Boy, à procura de diversão, atravessam a ponte para o outro lado da cidade. Implicitamente (mas explícito nas imagens) trata-se do gueto, do bairro dos negros, onde a ordem e a lei não penetram, e fermenta uma forma nova de lazer (hoje em dia já totalmente assimilada por nossa cultura) que Rusty define apenas como "cheio de cores, cheio de gente": ali, onde as pessoas tomam as ruas, dançam e drogam-se livremente, os meninos conseguem se sentir um pouco confortáveis; um nerd como Steve até pode admitir sua atração pela perigosa Cassandra, e cair na farra mesmo depois de tanto julgar o amigo. A descontração daquele espaço também permite alguma troca entre Rusty e seu irmão – permite, por exemplo, uma resposta mais verdadeira diante da mesma pergunta sobre a Califórnia: os "beach boys, blondes walking around, palm trees" do imaginário anestesiado de Rusty são substituídos por outra visão, mais autêntica e precisa, "California is like a beautiful and wild girl on heroine". A ideia de paraíso hollywoodiana, pregada e consumida massivamente, cai por terra frente àquela experiência visceral de realidade, frente às belezas perturbadoras do mundo real. Entre as confissões e lembranças compartilhadas, frases como "I stopped being a kid when I was five", de Motorcycle Boy, ajudam a situá-los em lados claramente opostos: Rusty numa zona lúdica e infantil, da inocência, enquanto Motorcycle Boy pertence à dureza do amadurecimento, à consciência demasiadamente lúcida. Revelações inconvenientes de Motorcycle Boy como a visita feita à mãe deles, que Rusty julgava ter morrido mas estaria vivendo feliz com nova família, na longínqua Califórnia; ou porque ele detém resposta para medos e angústias do irmão mais novo, conhecimentos ancestrais sobre a família (como o primeiro porre do pai deles, um bebum dos mais devotos), faz sentido pensar o lugar materno ocupado por Motorcycle Boy na orfandade do irmão. Aqui fica evidente, sobretudo, além da mera maternalidade, todo o seu caráter propriamente feminino – imbuído de uma sensibilidade singular e um sentimento de profunda responsabilidade em relação aos demais –, contrapondo-se ao projeto de hipermasculinidade e violência perpetuado por Rusty.
Evocando a simbologia mais marcante do filme, poderíamos afirmar que Rusty vivia satisfeito dentro do aquário – sua ruptura está sugerida apenas quando quebra a janela da viatura, ao ver a própria imagem refletida no vidro, tal como os peixes. As cores deslumbrantes destes peixes, que a "percepção acurada" de Motorcycle Boy ainda alcança em meio ao daltonismo da depressão, fazem deste um obcecado pela libertação do oceano, dos rios – uma transcendência que romperia com as amarras do tempo, da sufocante experiência terrestre e daquela sociedade repressiva, segregada e com medo. Mas esta almejada transcendência só poderia vir na morte; prematura e previsível, tipicamente beatnik, sua morte é vital (de novo os ares de tragédia) para o despertar de Rusty, forçando-o brutalmente a se dissociar daquele caos e partir na motocicleta em busca de sua verdadeira identidade, sua essência – recomeçando um ciclo. Enquanto ainda debatem-se nas limitações do aquário, outro elemento impera: com os ponteiros acelerados e um tique-taque ecoando constantemente, o signo do relógio é empregado com abundância em variados planos do filme. Corporifica um sofrimento subterrâneo que os personagens, por vezes, tentam adjetivar pobremente como "tédio", como a vida se tornando uma ansiosa espera por não se sabe o quê. E procura-se qualquer euforia barata para distrair esse medo perseguidor, andam em bandos pois "ficar sozinho parece estar sendo asfixiado", como desabafa Rusty; visando à todo custo repelir de si a própria subjetividade, esquecer essa agoniante percepção de que o tempo voa muito rápido e, de modo paradoxal, nada nunca parece realmente mudar – grande parte da admiração por Motorcycle Boy, afinal, vem de seu êxito em edificar uma personalidade, um nome tão sólido que resistiria à força da passagem do tempo. O sempre inventivo Tom Waits condensa esta temática sob um ângulo excêntrico em falas breves e na afetada e memorável interpretação. No papel de atendente da lanchonete, eterno observador dos dramas dos garotos, com uma sabedoria resultante de longa decomposição pela loucura, ele ajuda a deslocar as questões expressas somente pelos adolescentes para uma escala universal e humana. Rumble Fish também possui outros tipos curiosos de raízes na realidade. Francis Coppola sempre assumiu o caráter autobiográfico da obra, bastante inspirada pela relação de idolatria por seu irmão mais velho na infância – um tema abordado antes, com menos intimidade, em Poderoso Chefão (1972). Dennis Hopper, caso mais notável, no papel de pai arruinado e relapso dos dois irmãos, traz para o filme uma ironia amarga. Seu personagem, à nível narrativo, através das roupas em farrapos e do alcoolismo pesado, metaforiza o estado degradado no qual a sociedade americana se encontrava após duas guerras mundiais e uma "Grande Depressão", solo propício para gerar filhos como aqueles. À nível de realidade, porém, a paternidade simbólica de Dennis Hopper suscita o próprio passado do ator, que inscreveu com seu rosto a contracultura na história do cinema – em Easy Rider - Sem Destino (1969), o clássico definitivo do movimento – e depois enfrentou uma década de dificuldades na carreira, grave depressão e abuso de drogas. Na mudança gradual de ótica sobre o personagem – de sua 1ª aparição, desacordado e sem nenhum tipo de identificação, até seu discurso ao final, onde revela uma aguda noção da natureza de seu filho –, se acusa, de certa forma, a displicência consciente da sociedade como um todo e um possível sentimento de culpa, em Hopper particularmente, por ter desempenhado tão importante função na cristalização daquele estilo de vida e na sua exportação para o mundo – com todos os incalculáveis desdobramentos desta ação.
Pode ser que, no final das contas, Rumble Fish se destaque na sensível análise geracional sobre a rachadura inaugurada pelos beatniks e o efeito em seus "irmãos-caçula", os hippies e todas as gerações seguintes que se inventaram a partir desta carência fraterna, sempre pautadas de alguma forma em nostalgia; ou sobre termos atingido o ápice de nossa cultura da idolatria, de celebridades, e o tabu e a mística que envolvem suas vidas privadas; ou, talvez, olhando mais de perto, seja sobre um alegórico "irmão mais velho" que todo ser humano precisa se libertar – quando impõe a si mesmo uma projeção de eu ideal e inalcançável – e também, por outro lado, sobre o papel exaustivo de "irmão mais velho" ao qual todos estão fadados – no que tange a pressão das expectativas impostas pelas pessoas ao nosso redor. Neste sentido, parece mais razoável considerar as sugestivas intertextualidades da obra: das bocas dos personagens, ouvimos referências à "Robin Hood" e "Flautista Mágico" (conto dos irmãos Grimm sobre um líder revoltado que resgata todas as crianças do reino de adultos corruptos e maldosos); há os vestígios de Tragédia Grega, pulsando nas entrelinhas do universo do filme; e tem "O Estrangeiro", romance emblemático de Albert Camus, como a leitura preparatória de Mickey Rourke para o papel de Motorcycle Boy. A força destes paralelos realça a definição que melhor me seduz de Rumble Fish como uma fábula. Uma bela fábula contemporânea: parte de símbolos compactos e incisivos, mitos e narrativas muito valiosos para nosso atual entendimento do mundo – a moto e a jaqueta de couro, a criança e o adulto, o masculino e o feminino, o gueto e o status quo –, deixando o microcosmo de Rusty James para refletir sobre temas dos mais urgentes e dos mais primordiais.
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