Quando Kléber Mendonça Filho e sua equipe, na estreia do filme em Cannes, decidiram se posicionar publicamente quanto ao debate político vivido hoje no Brasil, já sabiam de antemão os riscos que corria sua obra. Mesmo previsivelmente, é lamentável Aquarius ter sido, de fato, tão prejudicado ao inserir-se neste contexto de discussão, e que um filme tão rico esteja sendo enquadrado e reduzido, constantemente, a uma questão da qual não faz parte. Aquarius pertence a um posicionamento infinitamente mais amplo. Seu diretor, ao optar por manifestar-se politicamente neste momento tão conflituoso, fez não só um gesto de coragem, mas demonstrou um alinhamento fiel para com os ideais defendidos em seu longa, e bem como Clara na trama, atestou o quão revolucionário pode parecer, nos dias de hoje, recusar a submissão silenciosa.
Apesar dos enfoques errôneos recebidos pelo filme, a reflexão em Aquarius é outra. Topamos com Clara (Sônia Braga) no princípio de um novo conflito em sua vida. Como a última moradora do último prédio de modelo antigo na orla de Recife, ela terá de lidar com os estratagemas inescrupulosos da construtora Bonfim, que almeja seu apartamento para demolir o velho edifício e projetar prédios novos e modernos. Ela, viúva e já muito bem-resolvida; ela, respeitadíssima jornalista musical, que sabe ter aberto mão de muito por sua profissão; ela, que já domou um câncer de mama e hoje peita, sem medo, a vida com um seio a menos. Estes são apenas alguns dos traços delineados em Clara que justificam sua postura firme e imaleável, sua sensibilidade e sua determinação. Sônia encarna, como pontuou o próprio Kléber, a figura da heroína clássica, e para a situação abordada no filme, a única heroína possível.
A única, pois a fim de dimensionar o gigantismo do sistema ao qual Clara presta sua pequena resistência, enriquece-se a personagem de uma rara nobreza de espírito e senso de justiça. Somos rapidamente impelidos à compaixão por sua luta solitária, mas nunca desanimadora. Na verdade, à medida que a pressão imposta pela construtora começa a multiplicar-se por outros personagens, como ex-vizinhos e familiares, e Clara vai encontrando-se mais só, nossa confiança em suas virtudes e capacidade, mesmo impotentes do outro lado da tela, torna instigante sua trajetória. Afinal, não é exatamente fácil se desprender de Seu Geraldo (Fernando Teixeira) e Diego (Humberto Carrão), seu neto, que lideram a empresa. Homens de fala polida e porte elegante, educados e sempre “abertos ao diálogo”, ofertando propostas e contra-propostas milionárias, e ainda se dizendo ressentidos pelos funcionários e pedreiros desempregados pelo atraso no projeto. Contra tudo isso, a primária vontade de permanecer onde sempre esteve: no edifício Aquarius, cheio de memórias e afetos.
E pode alguém contestar os motivos de Clara? Sua recusa em deixar o Aquarius, como fez toda a antiga vizinhança, não aponta para razões ou justificativas. O problema dali nasce, essencialmente, por negar-lhes a expectativa que a foi implicada. Como Ana Paula (Maeve Jinkings), filha de Clara, insistindo que a mãe se mude pelas praticidades de um prédio moderno, incapaz sequer de considerar suas motivações para ficar, ao que Clara responsabiliza por sua pobre “visão de mundo”. Esta visão de mundo, porém, é a que movimenta a maioria dos personagens no filme e faz de Clara o ponto fora da curva. Para muitos, é inconcebível a ideia de uma senhora optar pelo edifício com menos facilidades, como pode também parecer espantoso ela fumar maconha e divertir-se com um garoto de programa. Alheia aos padrões de seu entorno, Clara manifesta sua resistência de variadas formas, que não só a permanência no apartamento.
Nesta visão de mundo limitada que a cerceia e a torna incompreendida, mesmo quando expressa nas sinceras preocupações de seu irmão e sua cunhada, seus filhos ou de Roberval (Irandhir Santos), seu amigo salva-vidas, esconde-se uma motivação extrínseca e maior. Por enxergarmos o ponto de vista de Clara, fica evidente a facilidade com que a construtora Bonfim induz todos à sua perspectiva. Munidos especialmente de capital, mas também de colunas sociais e da imagem simpática, metaforizam em sua procura desmedida pelo lucro e o consequente abandono dos valores éticos e morais, a engenhosidade fracassada de nosso sistema vigente. São descortinados pelo olhar severamente crítico da protagonista e revelam-se tipos desprezíveis, corruptos, hipócritas e depravados. Simbolizam esta forma de câncer social: os homens que todos os dias vestem terno e gravata, que possuem diplomas, poder e influência, que coordenam, enfim, a própria máquina da sociedade; mas que trabalham em franco desserviço das pessoas: giram o mundo de acordo somente com seus particulares interesses.
Por isso conhecemos o conflito de Aquarius já estando iniciado, e nem o assistimos chegar ao fim concretamente. Está claro quem são, desde o princípio, seus perdedores. Diego e seu avô, bem como todos de semelhante aspiração, perderam no momento em que se distraíram do propósito fundamental da vida, que Clara parece conhecer tão bem, para deixarem governar-se por um objetivo externo e vazio, pela fome ilusória do dinheiro. Formam-se em business mas carecem de formação humana, sintetiza a protagonista. Carecem de seu olhar atento para o que constrói, de fato, nossa vivência: as relações e os afetos que nos circundam e sustentam, a preciosidade de nossas memórias e da conservação da nossa história. Vide o roteiro do filme: todo o desprazer causado pelo mote principal, o atrito de interesses com a construtora, é contrastado com a bonita gama de relacionamentos que Clara coleciona. Filma-se o amor implícito mesmo às trocas mais cotidianas, e que mora nestas sequências de calorosas festas de família, na descontração da saída noturna com as amigas, nas conversas maternais com o sobrinho Tomás, na vigilância carinhosa de Roberval, na fidelidade incontestável de Fátima, sua empregada. O valor dos laços humanos está por toda parte em Aquarius, ressignificando a luta de Clara na medida em que nos indica uma correspondência na ternura com que olha por suas amizades, com que guarda seus discos de vinil, ou com que anseia a preservação do edifício, seu lar por tantas décadas. É sua maneira particular de se relacionar com o mundo que está sendo contestada.
Também vale observar o progresso na estética de Kléber. Ele mantém aqui o seu mesmo olhar invasivo e disperso que entrava por diversas casas e vidas em “O Som ao Redor”; a câmera ainda passeia os ambientes, aponta comentários sociais e históricos, depara-se com situações inusitadas e deixa algumas pontas propositalmente soltas, porém sendo tudo agora guiado por uma figura central: Sônia Braga. Além disso, Aquarius carrega uma carga emocional superior a “O Som ao Redor”. Não apenas elabora personagens mais profundos como, especialmente, recobre-os de um aspecto pessoal e nostálgico. Isto é refletido também através do papel da música, muito eficiente em nos localizar no tempo e espaço (percorrendo canções da memória brasileira e recifense), e pela sua presença vital em algumas das melhores cenas do filme – a exemplo de “Pai e Mãe”, de Gilberto Gil, que ao ser posta na vitrola de Clara à pedido da nova namorada de seu sobrinho, envolvendo as duas recém-conhecidas numa longa e emocionada troca de olhares, sugere o canal direto que cultivamos entre a arte e nossos sentimentos, e seu poder de conectar as pessoas, suas emoções e memórias, num momento de catarse comum.
Em seu simbólico desfecho, Aquarius confirma sua ficção a serviço de um sério retrato sobre nossa realidade. A história de Clara, metonímia para todos os tipos de opressão regidos caladamente por nosso sistema, serve como uma carta de apoio a cada um que ousa pensar por si mesmo e mantém-se fiel a seus ideais. É um apelo, educado como os convites da construtora Bonfim, para que urgentemente se abra os olhos para essa ilusão que engolimos passivamente todo o tempo: de que a felicidade pode ser encontrada em algum lugar que não em nossa própria humanidade.
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