O cinema do italiano Roberto Rossellini é freqüentemente associado aos temas de cunho social e também por seu pioneirismo no que ficou conhecido como neo-realismo italiano, movimento que revelou ao mundo uma nova maneira de pensar o cinema e de quebra criticar toda a desordem social pungente para os seus artistas criadores. Poderia dizer que no sentido de mudança, Viagem à Itália é uma evolução na abordagem de Rossellini; trata-se de um drama conjugal que analisa de maneira sublime o relacionamento em crise de um casal durante uma viagem à Itália.
Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954) é um drama incrementado por uma paisagem inspiradora. Durante uma viagem até uma casa de campo numa região próxima ao Vesúvio e também na região de Pompéia e Nápoles, Katherine e Alexander Joyce procuram um comprador para uma casa herdada pelo casal e no decorrer dessa temporada imersa num idioma desconhecido e inebriado de história, eles discutem posicionamentos em relação ao casamento que só afunda em ruínas. Aparentemente essa viagem é, ainda que tacitamente, uma última solução para o casamento; uma tentativa brusca de aproximação e algo que os deixe a sós a ponto de enxergarem-se e tocarem-se no mais profundo nível de relacionamento. A situação atual de Katherine e Alex é o silêncio resignado; a permanência adversa à solidão simplesmente pela companhia que não passa de convívio, como estranhos.
Katherine Joyce: This is the first time that we’ve been really alone ever since we married.
Alexander Joyce: Yes, I suppose it is.
Algo funciona imediatamente nessa proposta implícita: a personalidade de cada um irrompe da indolência compartilhada e logo percebemos que eles precisam de esclarecimento mais do que qualquer um que acompanha a história. Até que estejam livres das amarras sentimentais, os verdadeiros sentimentos não aparecerão ou ainda se mostrarão numa perspectiva errada; entre eles dois nada é aquilo que se sustenta parcamente nesse espaço. Isto é, no curtíssimo espaço entre Alex e Katherine algo se sustenta e é suficiente para esconder os sentimentos dos seus próprios donos. O mais fascinante em Viagem à Itália é justamente investigar junto com o casal o que é isso que se sustenta misteriosamente. Katherine reage de maneira explicitamente controversa ao notar as investidas de Alex numa moça que encontram numa festa: ela garante uma rigidez indiferente que só esconde o óbvio para nós que observamos, ela está desesperada. No quarto mais tarde, ela induz uma discussão ao assunto, mas sempre com um afastamento de insegurança; como uma disputa de forças opostas que não contarão com suficiente confiança a ponto de ceder a sua barreira individual. Ele reage da mesma forma como se flertar com uma moça na frente da esposa fosse algo tolerável, sobretudo para a esposa. Katherine busca refúgio na imensidão cultural da região em diversos passeios pelos museus e atrações turísticas, mas elas só servem para aforar ainda mais o que está latente em Katherine, ela deseja sentir ao máximo o que pode sentir pelo marido para que possa avaliar esse sentimento. Alexander Joyce, por sua vez, age de maneira semelhante e faz o papel do marido frio e supostamente abstraído das responsabilidades com a esposa. Ele procura explorar a cidade de uma maneira mais hedonista e vai a boates e festas onde encontra mulheres também solitárias. A cidade surte um efeito devastador no casal: se de um lado ela expande os sentimentos de Katherine por outro ela retrai a impulsividade de Alex e os encaminha para um ponto de convergência nunca anunciado; nunca assegurado. Numa das melhores cenas que eu já vi, Alex chega ao hotel desiludido pela culpa de estar prestes a trair Katherine e ainda angustiado, decepcionado, pois a cidade só lhe oferece mulheres casadas esperando pelo marido, bares e boates vazios de significado e prostitutas em crises existenciais. Ele, então, caminha até ela que agüenta firmemente o cansaço, mas sofre de uma angústia que a impede até mesmo de chorar. Ela anseia pelo diálogo e ele procrastina o mesmo diálogo; ele não encontra na cidade o que tem medo de procurar em casa e ela derrama poucas lágrimas contidas de uma dor que não pode controlar. Quando o divórcio é anunciado, os sentimentos parecem correr contra o tempo para um esclarecimento e uma redescoberta de um amor que ainda existe. Eles atacam-se, mas sofrem juntos um pelo outro; provocam-se, mas compartilham um ciúme escusado de sentido e relevância. A cena final é um desarmamento sentimental e uma entrega esperançosa no último instante; numa metáfora violenta ou um ensaio para a solidão: Katherine o abraça e implora pelas palavras que deseja ouvir. Tão sensível que não importa quão real seja nem se consta na realidade.
Katherine Joyce: Tell me. I want to hear you say it.
Alexander Joyce: Alright, I love you.
Quando lembramos a tendência realista de Rossellini fica ainda mais claro quanto responsável ele foi pelo desenvolvimento do cinema moderno; por um lado levava o cinema para as ruas na crua realidade expandida do contexto social, mas por outro lado investia também nos limites circunscritos entre seus personagens cheios de amor, angústia e sentimentos de qualquer espécie. O realismo em Viagem à Itália é outro realismo, aquele que assume as aléias do amor no casamento: aquele que está suspenso e é frágil quando elucidado, mas forte quando posto a prova.
Incrivelmente sublime. Viagem à Itália é um romance perfeitamente ilustrado onde estão presentes a arte clássica e ainda o preâmbulo para a modernidade. Influência declarada no cinema de gênios como Godard e presente na efervescente juventude do cinema moderno, Rossellini foi mestre para a Novelle Vague e figurou ainda como um dos criadores do Neo-realismo italiano. Obra prima!
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