“NA CIDADE DA VIDA E DA MORTE ATÉ OS NAZISTAS PODEM SE TORNAR MOCINHOS”
Encontrar um filme que ninguém conhece é como encontrar uma pérola. Normalmente, somos influenciados pelos que nos cercam, em níveis diferentes, seja pelas avaliações que críticos ou espectadores fazem. Então, quando um filme é considerado bom, já vamos assisti-lo com a predisposição de procurar qualidades, de vê-lo sob uma perspectiva positiva. Não que isso seja condenável. Numa sociedade onde tempo é dinheiro, queremos assistir “o que vale a pena”, de forma que procuramos a opinião alheia para evitar o desgosto. Isso não aconteceu em A Cidade da Vida e da Morte, lançado em 2009, e vencedor de melhor filme estrangeiro na Associação de Críticos de Filmes de Los Angeles, entre outros prêmios. Felizmente, na época, não encontrei nada que me indicasse sobre a qualidade do filme. Foi um tiro no escuro.
Descobri esse filme ao acaso. Estava lendo matérias sobre o massacre perpetrado pelos japoneses em Nanquim, uma das antigas capitais da China, um episódio pouco conhecido pelo público geral. Em 1937, o exército imperial sitiou e invadiu a cidade, mas eles não se contentaram apenas com isso; queriam fazer de Nanquim um exemplo. E aí as barbaridades começaram: estupros em massa, enterro de crianças e idosos vivos, tiro ao alvo com civis, assassinatos a espadadas e etc. Nanquim foi o prelúdio do horror que se seguiria na Segunda Guerra Mundial.
Não que um cineasta não deva procurar emocionar os espectadores, como Spielberg fez em A Lista de Schindler, mas, às vezes, procura-se uma perspectiva mais bruta, menos romântica. E o filme de Lu Chuan é, com certeza, a maior realização desse tipo em filmes do gênero. Quase nada nesse filme é romantizado, sendo episódios-chave, como as prostitutas que se sacrificam pelas outras mulheres, amplamente conhecidos pelos pesquisadores do tema, retratados com fidelidade. E isso não quer dizer que o filme seja frio ou didático. Como experiência visual, a meu ver, foi mais chocante do que A Lista de Schindler, um filme que procura guiar a emoção do espectador, cheio de violinos e planos sentimentais, coisa que, dependendo do espectador, pode causar um efeito contrário ao pretendido.
Resumidamente, A Cidade da Vida e da Morte inicia-se com a invasão japonesa à cidade, dizimando o resto da resistência chinesa. Kadokawa (Nakaizumi Hideo) é um soldado inexperiente, trabalhando como intérprete do exército japonês. Sua missão é esclarecer as negociações com os estrangeiros, inclusive aliados, como John Rabe (John Paisley), um empresário nazista, além de Minnie Vautrin (Beverly Peckous), uma missionária inglesa, sendo ambos baseados em personagens históricos. É curioso ver um nazista se esforçando tanto para impedir atrocidades, coisa que nos remete ao conceito da banalidade do mal, da filósofa Hannah Arendt, explicitando que muitos nazistas agiram apenas por osmose na Segunda Guerra (não que isso deva isentá-los, é claro).
E assim se dá a dinâmica da história; conforme o exército vai se apropriando da cidade, a crueldade, sistemática, vinda do comando imperial, vai mostrando os seus dentes, e só há o poder da Zona de Segurança, comandada pelo Sr. Rabe, para impedir o terror nipônico. Tanto Minnie quanto John Rabe acolhem as vítimas de guerra. Mas logo o exército japonês começa a requisitar mulheres e crianças, até a situação se tornar insustentável. Mesmo sendo um membro do 3º Reich, aliado dos japoneses, John Rabe não será o bastante para proteger tantas pessoas. No meio disso, está o Sr. Tang (Fan Wei), um contrabandista que age de maneira “antipatriótica” em prol da sobrevivência de sua família.
Curiosamente, esse filme quase foi proibido pela censura chinesa, pois trata o “protagonista”, Kadokawa, de forma humana, fato que não agradou ao Partido Comunista. Ele é um rapaz que foi seduzido pela propaganda japonesa, entretanto, em contato com a guerra, vendo tanto sangue escorrendo de forma desnecessária, perde o encanto, afinal não há honra naquela forma de combate. Mas é sempre hesitante, acovardado. Sua única ligação naquele ambiente infernal é uma prostituta sequestrada do Leste Asiático, pela qual se apaixona.
De forma geral, a montagem do filme é seca, desolada, como devia ser num cenário tão catastrófico. Lu Chuan optou por fazer o filme em preto-e-branco, mas é diferente do modo empreendido por Spielberg, de traços mais claros, de tom mais idealizado. O preto-e-branco de Lu Chuan é puro nanquim, a cidade da tinta, que, nesse episódio, foi pintada de sangue negro. E as atuações não deixam a desejar, tendo cada ator cumprido a proposta de seu personagem com precisão, inclusive nos momentos mais aterradores. Na imersão das cenas, esquecemos que se trata de um filme, e é aí que a empatia se manifesta. Destaque para Nakaizumi Hideo, que interpreta Kadokawa de modo sutil, fugindo do estereótipo que alguns têm do cinema oriental. Muitas vezes, percebemos o “niilismo mental” em que o soldado embarca através do olhar perdido.
Não há redenção ou perdão. Creio que quem assistir os primeiros dez minutos já entenderá isso, pois é uma obra que não se concentra em um personagem específico, não sendo um filme de muitos diálogos. Não espere o empacotado As Flores do Oriente, de Zhang Yimou, um filme de leitura fácil e oportunista. A obra de Lu Chuan se concentra no plano geral. Em Nanquim, a guerra e a morte são protagonistas.
Critica quase perfeita! Com certeza, o tio irá assistir esse filme.
"explicitando que muitos nazistas agiram apenas por osmose na Segunda Guerra"
O tio só discorda nessa parte. O nazismo é uma, entre várias provas, de como a humanidade é imunda. O nazismo foi um câncer que teve, e deve, ser eliminado a qualquer custo.
Grato pelo elogio, mas acho que me expressei mal nessa observação (embora tenha mencionado em seguida: "não que isso deva isentá-los, é claro"). Quis dizer que, usando o argumento de Arendt, quando uma população é submetida a um sistema fascista, muitas pessoas "aparentemente normais" podem se tornar monstros. Ou seja, num modelo desse tipo, até o "tio da quitanda", por osmose, tem a possibilidade de fazer coisas horríveis.
Assista o filme sem medo. É chocante porque não é oportunista. Creio que Kadokawa, o intérprete do exército japonês, elucida esse argumento da "banalidade do mal". Se precisar de uma boa legenda, é só falar comigo.