Como estamos cansados de saber, o estúdios Walt Disney estão em uma fase de transição de um modelo clássico de animação para um mais contemporâneo. Enquanto a Pixar surgiu apostando em tramas complexas que atraem adultos e crianças e a Dreamworks surgiu apostando no humor ácido e em personagens carismáticos, a Disney se via perdida entre duas coisas: seu visual e sua maneira de contar uma história. A história clássica de princesas e contos de fadas havia perdido o encanto e o visual 2D parecia pouco criativo e ultrapassado diante das animações em 3D detalhistas e/ou grandiosas dos outros estúdios, dessa forma o estúdio viu-se obrigado então a se reinventar, a criar uma nova Disney que funcionasse nesse novo milênio.
Foram várias formas de tentar se adaptar à nova demanda do público. Tivemos o estúdio tentando mudar para um visual 3D sem ser bem sucedido (O Galinho Chicken Little e A Família do Futuro já parecem datados visualmente em pouco mais de uma década). Vimos também o estúdio apostar excessivamente no humor (Que a Vaca Tussa). Houve até a tentativa de mostrar o antiga história de princesas com uma nova roupagem (A Princesa e o Sapo). Nada do que o estúdio investia parecia estar dando certo e tudo levava a acreditar em uma ida sem volta ao fundo do poço.
Mas eis que em 2012 somos apresentados à Detona Ralph, uma obra com embalagem pop e humor referencial que emulava um pouco àquilo do que levou a DreamWorks ao sucesso. Em 2013 veio Frozen, um filme que reverenciava os clássicos da própria Disney sobre princesas e ainda por cima subvertia o conceito de “ato de amor verdadeiro”. Em 2014 o estúdio embarca na moda de super-heróis e surge com o divertido Operação Big Hero, que mesmo que não seja lá particularmente muito memorável, apresentou um dos personagens mais carismáticos da década com o Baymax. Três obras. Três acertos. Três passos que o estúdio deu para frente mostrando que possui sim fôlego e capacidade para adequar-se a este novo público. No entanto, nenhuma dessas obras chegava perto da qualidade e complexidade da sua coirmã (e principal rival), que era a Pixar. E é aí que entra Zootopia.
Ambientada em um mundo habitado por animais que evoluíram de seus instintos primitivo de presa e predador, Zootopia – Essa Cidade É o Bicho é protagonizado pela coelha Judy Hopps, que sonha em ser a primeira policial coelha de Zootopia e que terá que vencer vários obstáculos para conseguir alcançar esse objetivo. Quando Judy chega na cidade ela conhece Nick Wilde, uma raposa que não inspira muita confiança, e os dois acabam por se envolver em uma investigação sobre o sumiço de habitantes da cidade.
A partir dessa premissa já é possível perceber que a obra trata-se de uma fábula, o que também reverencia à algumas das melhores obras do estúdio como Dumbo e Bambi, mas é na forma como essa fábula é contada que encontra-se o acerto do filme. Ao invés de ser contada de forma direta e focada em apenas uma lição de moral, o roteiro de Zootopia apresenta várias camadas e proporciona ao espectador diversas interpretações possíveis, de uma maneira que remete ao melhor que a Pixar pode trazer.
Temos as camadas mais óbvias que falam sobre a amizade superar as diferenças (a amizade entre raças diferentes) e a mensagem de sempre acreditar em si mesmo (Judy vira uma policial na cidade grande). São essas que as crianças irão captar e levar da sessão e são lições sempre válidas, mas felizmente o roteiro vai além disso e podemos captar nuances que não estão tão explícitas assim, como por exemplo o discurso feminista do filme.
Embora no filme todos digam que Judy é incapaz de alcançar seu objetivo por ser uma coelha, fica bem claro que é uma adaptação nada sutil sobre o que a mulher ainda é obrigada a ouvir. Ao duvidar da capacidade da protagonista os personagens expressam um discurso nada diferente do machismo propagado em nossa sociedade. O “você é pequena demais” pode ser mudado para “mulher é o sexo frágil” sem qualquer problema, assim como o “lugar de coelho é plantando cenoura” pode ser o “lugar de mulher é na cozinha”. Uma mensagem que infelizmente ainda precisa ser jogada na face da sociedade constantemente para que ela perceba, mude isso o quanto antes e que Zootopia acertadamente coloca em pauta.
Outro exemplo da riqueza de interpretações que o longa oferece e em toda a reflexão sobre presa e predador. Para exemplificar o quão inteligente é essa sacada preciso citar dois momentos: aquele em que Bellwether, vice do prefeito Leãonardo, fala que só está nesse cargo porque o candidato queria o voto das “presas” e aquele em que Judy faz um discurso sobre como a selvageria é algo geneticamente ligado aos predadores. Encarando a divisão entre presa e predador como qualquer divisão social que possa gerar preconceito, podemos perceber nesses discursos vários problemas. Enquanto o primeiro sugere uma aceitação da parte oprimida perante o opressor, a segunda tenta justificar o preconceito, como se fosse algo natural, o que ele não é, e é nessa sutileza que Zootopia me conquista. Ao invés de permanecer nas batidas - mas importantes - lições citadas anteriormente, o filme carrega em suas entrelinhas a mensagem de desconstruir os preconceitos para construir o mundo melhor, o que é socialmente relevante e colocado em tela de maneira brilhante.
Porém, não é só de interpretações que o roteiro do filme é feito e ele também possui outra qualidades como a construção das tiradas de humor. Seja através de referências, que vão de O Poderoso Chefão até Breaking Bad, através das características de cada animal ou até mesmo da quebra de expectativa, o humor funciona em quase todas as suas tentativas. O destaque fica com Flecha, a preguiça que atende no departamento de transportes, é claro, que mesmo com menos de três minutos em tela consegue marcar o espectador com a sua hilária participação.
Infelizmente o roteiro também possui falhas estruturais que prejudicam um pouco da experiência. A elaboração das viradas na história e a transição entre atos não fluem como deveriam e soam engessadas. Um exemplo que demonstra bem essas duas falhas é quando o mistério do desaparecimento dos habitantes é solucionados. Não é o fim do filme, sabemos que não é o seu encerramento, sabemos que o respiro que há ali é necessário, no entanto ele simplesmente soa como um desperdício de tempo, como se não fosse nada menos do que a ligação entre o restante do filme e o seu clímax. Além disso, a solução em si do caso, que caso fosse bem aproveitada seria sensacional, parece apressada demais e até um tanto superficial. Em ambos os casos, o ritmo do longa é consideravelmente prejudicado e se torna irregular.
Falando do visual da animação, creio que seja o seu maior ponto fraco. Há uma irregularidade entre os animais, pois enquanto alguns são sensacionais de tão bem feitos, outros parecem ter saído de um filme com orçamento menor, ou porque apresentam uma pobreza de detalhes ou porque tenha traços caricaturais. Os ambientes em si estão impecáveis em sua construção, porém fazem pouco ou nenhum sentido geográfica ou temporalmente. Os personagens vão de um lugar para o outro e nunca compreendemos a distância real entre cada lugar daquela cidade, não sabemos quanto tempo se passo, o que acaba por deixar o trabalho aquém do que poderia ter sido.
Mesmo diante desses problemas e inconsistências, a complexidade inesperada, os personagens carismáticos, as morais apresentadas, o foco no desenvolvimento da trama em detrimento do humor gratuito transformam Zootopia – Essa Cidade é o Bicho em uma grande surpresa e uma presença garantida na categoria “Melhor Animação” em qualquer premiação de melhores do ano. Parece que a Disney está, finalmente, voltando aos trilhos.
PS: A dublagem nacional está digna. Não há nenhum trabalho ruim, mesmo eu achando que Rodrigo Lombardi pudesse aproveitar melhor o personagem.
Muitos já dizem que a fase da Disney desde Enrolados já pode ser considerada um novo renascimento do estúdio.